A AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE EM FACE DOS LAÇOS AFETIVOS CONFIGURADOS
Sabe-se que o Direito de família é um dos ramos que mais se modifica com a evolução da sociedade, exigindo constante análise dos casos concretos não somente por replicação das normas legais vigentes, mas também com o intermédio de princípios fundamentais. Nesse sentido, nasce uma importante discussão que não é comumente vista nas famílias brasileiras. Existe a possibilidade de mudança de parentalidade do menor em caso de fatos impeditivos supervenientes ao registro?
Segundo entendimento firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, a existência de um longo tempo de convivência socioafetiva no ambiente familiar não é fato impeditivo para que o suposto pai ajuíze ação negatória de paternidade. O caso que deu origem à discussão foi uma ação de desconstituição da paternidade em caso no qual um homem, após o resultado do exame de DNA, rompeu relações com as filhas registrais de forma permanente.
De acordo com o autor da ação, as crianças nasceram na vigência do casamento e, com isso, foi induzido a erro e registrou as crianças normalmente. Após ser alertado por outras pessoas sobre eventual infidelidade da esposa, questionou a paternidade.
Em sede de primeiro grau, o juízo competente desconstituiu a paternidade apenas em relação a uma das meninas, por entender configurada a existência de vínculo socioafetivo com a outra, independentemente do exame de DNA ter excluído a filiação biológica com ambas. Já em segunda instância, a sentença foi reformada pelo tribunal, aduzindo que embora o resultado negativo do teste de DNA, as duas meninas teriam mantido relação socioafetiva com o autor da ação por pelo menos uma década. Destacou, ainda, que o vínculo de parentalidade não poderia ser verificado somente por uma relação genética.
Ocorre que, em sede de Recurso Especial, foi firmado o entendimento de que a existência de um longo tempo de convivência socioafetiva no ambiente familiar não impede que o suposto pai ajuíze ação negatória de paternidade.
Embora o número deste processo não tenha sido divulgado em razão de segredo judicial, a discussão apresentou importante repercussão no mundo jurídico. A Relatora ministra Nancy Andrighai julgou procedente a ação de negativa de paternidade alegando que " … Diante desse cenário, a manutenção da paternidade registral com todos os seus consectários legais (alimentos, dever de cuidado, criação e educação, guarda, representação judicial ou extrajudicial etc.) seria, na hipótese, um ato unicamente ficcional diante da realidade que demonstra superveniente ausência de vínculo socioafetivo de parte a parte, consolidada por longo lapso temporal".
Destaca-se que embora seja incontroverso no processo que dez anos de convívio é tempo suficiente para caracterizar uma relação socioafetiva entre o autor e as crianças, também se aferiu o fato de que, após o exame de DNA, em 2014, esses laços foram rompidos de forma abrupta e definitiva, situação que igualmente se manteve por seis anos.
O instrumento processual utilizado para alcançar o entendimento – ação negativa de parentalidade – tem natureza jurídica de ação declaratória, e seu rito processual é o comum. Tendo em vista a importância dos direitos discutidos e suas fortes consequências aos vínculos familiares, a ação deve correr em segredo de Justiça.
De acordo com o Código Civil, o marido é o único legitimado para propor ação impugnando a paternidade do filho havido no casamento, conforme disposto no artigo 1.601. Trata-se, portanto, de direito personalíssimo, sendo o mesmo tutelado desde o Código Civil de 1916.
Segundo a jurisprudência pátria, a legitimidade ordinária ativa da ação compete exclusivamente ao pai registral por ser ação que visa proteger direito personalíssimo e indisponível do genitor, conforme artigo 27 do Estatuto da Criança e do adolescente: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.”
No entanto, no sentindo contrário, a ação de anulação de registro de nascimento, com fundamento no artigo 1.604 do Código Civil, pode ser manejada por qualquer pessoa, pois não apresenta caráter personalíssimo. Basta, portanto, que haja legítimo interesse do peticionante em demonstrar a existência de erro ou falsidade daquele registro. Nesse sentido o STJ decidiu no REsp: 1497676 SC 2014/0298565-1 de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, veja-se: “RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. ART. 1.604 DO CÓDIGO CIVIL. PRETENSÃO QUE VINDICA BEM JURÍDICO PRÓPRIO DOS HERDEIROS. ILEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO. RECURSO DESPROVIDO.
(…) 2. Todavia, o espólio não detém legitimidade para o ajuizamento da ação, uma vez que a sua capacidade processual é voltada para a defesa de interesses que possam afetar a esfera patrimonial dos bens que compõem a herança, até que ocorra a partilha. Como, no caso, a demanda veicula direito de natureza pessoal, que não importa em aumento ou diminuição do acervo hereditário, a legitimidade ativa deve ser reconhecida apenas em favor dos herdeiros, que poderão ingressar com nova ação, em nome próprio, se assim o desejarem.”
Diferente do que era disposto sobre o tema no antigo Código Civil, o ordenamento jurídico atual não determinou prazo para que o marido exerça o direito de impugnar a paternidade dos filhos matrimoniais. Tornou, portanto, imprescritível a ação negatória de paternidade e, com isso, o direito de impugnação configura-se como vitalício (art. 1.601). O objetivo do legislador ao tratar não somente do tema, mas de toda a sistemática civil brasileira era conduzir a lei positiva de acordo com o princípio da busca da verdade real.
Importante salientar que a lei traz sólidos requisitos para utilização do instituto. A princípio, exige que o marido traga conteúdo probatório que ateste a impossibilidade física de haver coabitado com sua mulher à época da concepção. Jurisprudencialmente muitos são os exemplos fáticos, como na hipótese do casal se encontrar separado por grande distância, como o cônjuge preso ou servindo às forças armadas em época de guerra, ou em caso de mutilação ou de moléstia que torne impossível de se manter relações sexuais com a sua esposa, ou ainda, em de caso de impotência. Destaca-se que a impotência como excludente da paternidade deve ser a absoluta e devidamente provada por meio de laudos médicos.
Tendo em vista o caráter dinâmico do estudo do Direito, novos casos fáticos diversos e inovadores possibilitaram um estudo maior do tema, como nos casos de inseminação artificial. Na hipótese do marido que, impotente para procriar, autoriza a inseminação artificial em sua esposa, com esperma de terceiro, não poderá posteriormente querer escusar-se de sua obrigação parental em virtude da concordância do procedimento.
Destaca-se, ainda, que dá para se inferir que a lei impõe duas importantes conclusões sobre o tema: o adultério da esposa não basta para ilidir a presunção legal de parentalidade e, além disso, não basta a confissão materna para excluir a paternidade. A confissão da genitora não basta, pois, tal confissão pode ser produto de interesses materiais, e não da verdade fática.
A principal prova que pode ser produzida acerca do tema é a realização de exames de DNA que comprovem que não houve filiação. Em virtude da resposta, é disposto ao até então genitor dissolver seu vínculo afetivo, sendo o tempo desse afastamento entre o pai que renegou o filho fundamental para solução do caso. Isso se dá porque a instabilidade das relações conjugais na sociedade atual não pode impactar os fortes vínculos de filiação que se constroem ao longo do tempo, independentemente da sua natureza biológica ou socioafetiva.
Conclui-se, portanto, que além dos requisitos específicos e determinantes para o ajuizamento da ação, a relação afetiva familiar no momento da propositura da ação deve ser analisada. Não basta ser analisado somente o critério temporal, isto é, de quantos anos o menor passou sendo tutelado pelo autor da ação, mas sim se o vínculo afetivo sobreviverá ao fato superveniente. Para tanto, serão analisadas todas as questões protetivas aos menores, como risco de prejuízo em direitos hereditários, financeiros para seu fiel desenvolvimento, entre outros, de forma que não fique desamparado. No entanto, vencidos esses obstáculos, o principal ponto de análise judicial é a existência ou não do vínculo afetivo, prestigiando os interesses de ambas as partes discordantes.