A DAÇÃO EM PAGAMENTO DE BENS MÓVEIS PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO
Tributo é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (CTN, art. 3º).
Importa analisar a definição com cuidado. Quando a legislação de regência fala em “moeda ou cujo valor nela se possa exprimir”, estaria incluindo, por exemplo, o trabalho do contribuinte (afinal, todo serviço é remunerado com um preço)? E o pagamento in natura (o bem não poderia ser exprimido em valor monetário)? Em geral, tais modalidades vêm sendo rejeitadas historicamente, i.e., não seria possível, em princípio, dar coisa ou oferecer serviços como forma de satisfação do crédito tributário.¹
Não obstante, uma mudança no Código Tributário Nacional passou a aceitar a dação em pagamento de bens imóveis, como forma de extinção do crédito tributário (art. 156, XI), só que “na forma e condições estabelecidas em lei”. Deste modo, caberia a cada “ente federativo, no domínio de sua competência e segundo as conveniências de sua política fiscal, editar norma própria para implementar a medida” (STJ, Primeira Turma, REsp 884272, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Julg. 06.03.2007, DJe 29.03.2007).
A partir de 1º de janeiro de 2016, com a edição da Lei nº. 13.259/2016, a União Federal passou a aceitar a dação em pagamento de bens imóveis, para extinguir créditos tributários, desde que atendidas algumas condições². De modo similar, vários Estados editaram leis prevendo a medida, por exemplo, o Estado do Rio Grande do Sul (Lei Estadual nº. 11.475/2000).
Todavia, se é possível a dação em pagamento de bem imóvel, seria possível previsão similar para bens móveis? Sobre a temática, o Supremo Tribunal Federal proferiu quatro decisões distintas.
A primeira, em sede de cautelar, suspendeu eficácia de lei do Distrito Federal que permitia a dação em pagamento com bens móveis (STF, Plenário, MC na ADI 1917, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Julg. 18.12.1998, DJe 19.09.2003), veja-se:
CRÉDITO TRIBUTÁRIO - EXTINÇÃO. As formas de extinção do crédito tributário estão previstas no Código Tributário Nacional, recepcionado pela Carta de 1988 como lei complementar. Surge a relevância de pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade considerada lei local prevendo nova forma de extinção do crédito tributário na modalidade civilista da dação em pagamento. Suspensão de eficácia da Lei Ordinária do Distrito Federal de nº 1.624/97
Posteriormente, quando do julgamento de mérito, a Corte decidiu pela inconstitucionalidade da legislação estadual impugnada, todavia a ratio decidendi foi a violação ao princípio da licitação, e não a qualquer norma do subsistema tributário previsto na Constituição Federal, destaque-se:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUICIONALIDADE. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LICITAÇÃO (CF, ART. 37, XXI). I - Lei ordinária distrital - pagamento de débitos tributários por meio de dação em pagamento. II - Hipótese de criação de nova causa de extinção do crédito tributário. III - Ofensa ao princípio da licitação na aquisição de materiais pela administração pública. IV - Confirmação do julgamento cautelar em que se declarou a inconstitucionalidade da lei ordinária distrital 1.624/1997. (grifo nosso)
Explico. Imagine que grande empresa do ramo automobilístico se proponha a fornecer centenas de veículos, zero quilômetro, ao Estado-membro, em troca da extinção do crédito tributário que eventualmente tenha contra si. Tais automóveis renovariam toda a frota do Estado e, em tese, seriam contabilizadas com base em preço sem concorrência de qualquer sorte. Nesse sentido, o Estado estaria driblando o procedimento licitatório e conferindo vantagem privada à empresa contribuinte, sem a devida concorrência, à revelia do interesse público. Daí a vedação constitucional identificada pela Corte.
Não obstante, em outro caso, o Pretório Excelso afirmou ser possível, tanto em sede cautelar, quanto no mérito, que cada Estado-membro estabeleça regras específicas de quitação de seus próprios créditos tributários, superando expressamente o entendimento exarado na MC em ADI nº. 1.917 (STF, Plenário, MC na ADI 2405, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Julg. 06.11.2002, DJe 17.02.2006; STF, Plenário, ADI 2405, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Julg. 20.09.2019, DJe 03.10.2019), ressalte-se:
EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade: medida cautelar: L. estadual (RS) 11.475, de 28 de abril de 2000, que introduz alterações em leis estaduais (6.537/73 e 9.298/91) que regulam o procedimento fiscal administrativo do Estado e a cobrança judicial de créditos inscritos em dívida ativa da fazenda pública estadual, bem como prevê a dação em pagamento como modalidade de extinção de crédito tributário. I - Extinção de crédito tributário criação de nova modalidade (dação em pagamento) por lei estadual: possibilidade do Estado-membro estabelecer regras específicas de quitação de seus próprios créditos tributários. Alteração do entendimento firmado na ADInMC 1917-DF, 18.12.98, Marco Aurélio, DJ 19.09.2003: conseqüente ausência de plausibilidade da alegação de ofensa ao art. 146, III, b, da Constituição Federal, que reserva à lei complementar o estabelecimento de normas gerais reguladoras dos modos de extinção e suspensão da exigibilidade de crédito tributário. II - Extinção do crédito tributário: moratória e transação: implausibilidade da alegação de ofensa dos artigos 150, § 6º e 155, § 2º, XII, g, da CF, por não se tratar de favores fiscais. (...) VI - Licitação (CF, art. 37, XXI) - não ofende o dispositivo constitucional o art. 129 da L. 6.537/73 c/ a red. L. 11.475/00 - que autoriza a alienação dos bens objetos de dação por valor nunca inferior ao que foi recebido e prevê a aquisição de tais bens por município, mediante o pagamento em prestações a serem descontadas das quotas de participação do ICMS. VII - Demais dispositivos cuja suspensão cautelar foi indeferida.
Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO TRIBUTÁRIO. LEI DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL 11.475/2000. PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. COBRANÇA JUDICIAL DE CRÉDITOS INSCRITOS EM DÍVIDA ATIVA DA FAZENDA PÚBLICA. REVOGAÇÃO DE PARTE DA NORMA IMPUGNADA. CONHECIMENTO PARCIAL DA AÇÃO. PRECEDENTES. PREVISÃO DE MODALIDADES DE EXTINÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO EM LEI ESTADUAL. POSSIBILIDADE. ESTABELECIMENTO DE COMPETÊNCIAS E IMPOSIÇÃO DE ATRIBUIÇÕES AO PODER EXECUTIVO POR LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E VIOLAÇÃO À SEPARAÇÃO DE PODERES. IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÃO PARA REPARTIÇÃO OBRIGATÓRIA DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS POR LEI ESTADUAL. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPENSAÇÃO DE PRECATÓRIOS COM DÉBITOS DECORRENTES DE OPERAÇÕES FINANCEIRAS DE BANCOS PÚBLICOS ESTADUAIS. ALTERAÇÃO DA SISTEMÁTICA DE INSTITUTO DE DIREITO CIVIL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO (ART. 22, I, DA CF). INCONSTITUCIONALIDADE. COMPENSAÇÃO DE DÍVIDAS TRIBUTÁRIAS COM PRECATÓRIOS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. CONFIRMAÇÃO DA MEDIDA CAUTELAR EM MENOR EXTENSÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE EM PARTE. 1. A jurisdição constitucional abstrata brasileira não admite o ajuizamento ou a continuidade de ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo já revogado ou cuja eficácia já tenha se exaurido, independentemente do fato de terem produzido efeitos concretos residuais. Perda de objeto parcial da ação em relação aos seguintes dispositivos: inciso III do art. 114; parágrafo único do art. 118; e arts. 134 a 136, todos da Lei 6.537/1973 do Estado do Rio Grande do Sul, com redação dada pela Lei 11.475/2000 do mesmo Estado. Precedentes. 2. Não há reserva de Lei Complementar Federal para tratar de novas hipóteses de suspensão e extinção de créditos tributários. Possibilidade de o Estado-Membro estabelecer regras específicas de quitação de seus próprios créditos tributários. (...) 10. Conhecimento parcial da ação. Medida cautelar confirmada em menor extensão. Procedência em parte da Ação Direta de Inconstitucionalidade.
Cumpre colacionar o que escreveu o Min. Relator da ADI nº. 2.405, Min. Alexandre de Moraes, in verbis:
“(...) Veja que a controvérsia referente à matéria posta nos autos merece atenção em relação a duas situações. Na primeira, deve-se verificar a possibilidade de os Estados-membros estabelecerem, por lei ordinária, novas modalidades de extinção e suspensão de créditos tributários; na segunda, é preciso analisar se é admitida a utilização de dação em pagamento de bens móveis para a quitação de créditos tributários. (...) Como bem lembrado pelo Min. MOREIRA ALVES, entendo também aplicável ao presente caso a teoria dos poderes implícitos, segundo a qual ‘quem pode o mais, pode o menos’. Dessa forma, se o Estado pode até remir um valor que teria direito, com maior razão pode estabelecer a forma de recebimento do crédito tributário devido pelo contribuinte. A partir dessa ideia, e considerando também que as modalidades de extinção de crédito tributário, estabelecidas pelo CTN (art. 156), não formam um rol exaustivo, tem-se a possibilidade de previsão em lei estadual de extinção de crédito por dação em pagamento de bens móveis. (...)” (grifo nosso)
Assim, verifica-se que o subsistema tributário previsto na Constituição Federal não cria óbice à instituição de hipótese de extinção de crédito tributário baseado na dação em pagamento de coisa móvel, devendo, no entanto, o ente tributante adotar precauções para evitar a burla ao princípio licitatório.
Evidentemente, semelhante espécie de extinção deverá ser prevista em lei federal, estadual ou municipal, de acordo com a respectiva competência, não podendo o contribuinte, na ausência de expressa previsão legal, oferecer bem móvel em pagamento.
A abertura proporcionada pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal, portanto, pode trazer profundas mudanças na maneira que se entende o “tributo”, especialmente com relação a sua forma de pagamento, levando os entes federados a prever novas formas de extinção do crédito tributário capazes de comportar as particularidades dos contribuintes.
O ganho decorrente da criatividade legislativa equivale a um jogo de soma positiva, permitindo que os devedores do fisco encontrem maneiras mais diversificadas e menos onerosas de satisfazer suas dívidas, sem prejuízo do interesse da coletividade.
1 Cf. a respeito, o art. 162 do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 162. O pagamento é efetuado:
I - em moeda corrente, cheque ou vale postal;
II - nos casos previstos em lei, em estampilha, em papel selado, ou por processo mecânico.
2 Art. 4º O crédito tributário inscrito em dívida ativa da União poderá ser extinto, nos termos do inciso XI do caput do art. 156 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional , mediante dação em pagamento de bens imóveis, a critério do credor, na forma desta Lei, desde que atendidas as seguintes condições:
I - a dação seja precedida de avaliação do bem ou dos bens ofertados, que devem estar livres e desembaraçados de quaisquer ônus, nos termos de ato do Ministério da Fazenda; e
II - a dação abranja a totalidade do crédito ou créditos que se pretende liquidar com atualização, juros, multa e encargos legais, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre os valores da totalidade da dívida e o valor do bem ou dos bens ofertados em dação.
§ 1º O disposto no caput não se aplica aos créditos tributários referentes ao Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Simples Nacional.
§ 2º Caso o crédito que se pretenda extinguir seja objeto de discussão judicial, a dação em pagamento somente produzirá efeitos após a desistência da referida ação pelo devedor ou corresponsável e a renúncia do direito sobre o qual se funda a ação, devendo o devedor ou o corresponsável arcar com o pagamento das custas judiciais e honorários advocatícios.
§ 3º A União observará a destinação específica dos créditos extintos por dação em pagamento, nos termos de ato do Ministério da Fazenda.
§ 4º Os registros contábeis decorrentes da dação em pagamento de que trata o caput deste artigo observarão as normas gerais de consolidação das contas públicas de que trata o § 2º do art. 50 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.