A LIMITAÇÃO NA DISPOSIÇÃO DE BENS EM TESTAMENTO
Pense na seguinte situação: um precavido senhor, já no fim da vida, solteiro, pai de apenas um filho, deseja escrever um testamento com o objetivo de deixar todos os seus bens para sua vizinha, aquela que se dedicou em tempo integral para oferecer o maior conforto possível a ele quando esteve doente, enquanto seu filho foi completamente ausente.
Por mais que o senhor acreditasse que a vizinha fosse merecedora de herdar todo o seu patrimônio, o ato seria anulável. Ora, mas se o filho não cuidou de seu pai enfermo, deixando a responsabilidade recair totalmente sobre a mulher, como o Estado poderia impedi-lo de deixar seus bens para quem mais merecesse?
A QUESTÃO ENCONTRA SOLUÇÃO NO CÓDIGO CIVIL
Para compreendê-la, primeiramente, é preciso saber quem são os herdeiros necessários. No artigo 1.845, o legislador definiu que esses são os descendentes, ascendentes e o cônjuge.
Importante dizer que, conforme a ordem determinada pelo artigo 1.829, aberta a sucessão, primeiramente é verificada a existência de descendentes e cônjuge. Caso inexistam, a herança é destinada aos ascendentes, que, da mesma forma, concorrem com o cônjuge sobrevivente. Restando ausentes os ascendentes, defere-se o direito sucessório ao cônjuge somente e, por fim, caso esse também não subsista, aos colaterais, ou seja, irmãos, tios e sobrinhos, sendo certo que os de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto, respeitando a ordem delineada.
Aprendido o conceito, levamos o olhar ao artigo 1.789 do C. Civil, no qual se determinou que, “havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.”. Esse artigo limita o desejo do senhor, já que, por ter um filho, não poderá deixar todos os seus bens para sua atenciosa vizinha.
Logo, por contrariar o dispositivo legal, o testamento do senhor constituiria ato anulável, sem eficácia, já que a lei proíbe a elaboração de testamento que desrespeita a reserva da legítima, que é a quota parte reservada aos herdeiros necessários.
Importante dizer que, ainda que não tenha sido um filho cuidadoso e atencioso, o fato não enseja alteração do seu direito sucessório. Apenas perde esse direito aquele herdeiro que for excluído da sucessão.
A exclusão mencionada ocorre por sentença judicial, em casos nos quais o herdeiro tiver sido autor, coautor ou partícipe de homicídio doloso ou tentativa contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, na situação em que acusar caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrer em crime contra sua honra e, por fim, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. Todas essas hipóteses encontram-se determinadas pelo artigo 1.814 do Código Civil.
Contudo, importante dizer que o herdeiro excluído pode ser perdoado e receber sua quota parte hereditária caso o ofendido assim disponha expressamente em seu
testamento ou, ainda que não manifeste de forma expressa, o testador o inclua no instrumento após conhecida a causa da indignidade.
Como vimos, a ausência de cuidado do filho em relação ao pai não é causa que motiva sua exclusão da sucessão, inclusive, por ser descendente e, portanto, herdeiro necessário, sua existência impede que o senhor elabore testamento dispondo da integralidade de seu patrimônio.
Nessa situação, aplica-se o artigo 1.967 do Código Civil, o qual determina que, quando o testamento exceder a parte disponível, a disposição de vontade será reduzida pelo Juízo até que esteja devidamente adequada aos limites legais.
Desse modo, a designação dos bens feita pelo testador à sua vizinha será reduzida à metade, cabendo a seu filho herdar o restante, em conformidade com a legislação civil.
—
Autoria: Ana Clara Gonçalves Flauzino – Estagiária