DA FRAUDE À EXECUÇÃO
De posse de um título executivo, judicial ou extrajudicial, pode o credor promover sua satisfação em juízo, no primeiro caso, mediante cumprimento de sentença, no segundo, pela ação executiva.
Uma vez deflagrado o procedimento executivo, todos os bens do devedor, futuros e presentes, respondem pela integral satisfação do crédito exequendo (CPC, art. 789), por isso é importante que o credor esteja atendo à evolução patrimonial do correspondente devedor.
Pode ocorrer que o devedor, resistindo ao pagamento da dívida, queira alienar seus bens a terceiros, intentando burlar a execução. Por outro lado, os próprios terceiros podem aproveitar a situação precária dos bens do devedor e intentar driblar o credor, em cooperação com aquele, para obter bens que, antes de qualquer outra coisa, deveriam responder pela dívida em aberto.
É neste sentido que falamos em fraude à execução. Tal modalidade, considerada unanimemente pela doutrina como mais gravosa que a fraude aos credores, consiste em uma tentativa, tanto do devedor executado, quanto do terceiro adquirente, de não apenas esquivar ao credor, mas também ao próprio Poder Judiciário.
Aliás, importa ressaltar uma diferença importante e fulcral para distinguir a fraude ao credor da fraude à execução: aquela ocorre anteriormente à proposição do processo executivo, depende da prova de prejuízo efetivo ao credor (eventus damni) e da má-fé das partes envolvidas na transação (consilium fraudis); esta, por sua vez, depende necessariamente de já estar em curso processo executivo, seja qual for a modalidade, e como na maioria dos casos a fraude é presumida, independe de prova de má-fé do terceiro ou do devedor (ela é reputada in re ipsa, ou seja, inerente ao próprio ato), bem como independe da prova de prejuízo efetivo (por exemplo, o devedor pode ter outros bens executáveis, e mesmo assim ser reconhecida a fraude à execução).
Ademais, a lei é clara, operada a fraude à execução, reputa-se como ineficaz para o feito executivo a operação fraudulenta (CPC, art. 792, § 1º), por exemplo, alienado bem imóvel penhorado no bojo de um processo executivo, a alienação produz efeitos entre as partes contratantes, isto é, entre o terceiro-adquirente e o devedor-alienante, mas não é oponível ao credor, que poderá levar adiante os atos constritivos como se o bem ainda permanecesse na esfera dos direitos patrimoniais do devedor executado (CPC, art. 790, inciso V).
Essa é outra diferença importante para com a fraude aos credores, que demanda o manejo de ação própria – ação pauliana (CC, art. 158 e ss.) – para declarar a nulidade da transação e o retorno da situação patrimonial do devedor ao status quo ante. A fraude à execução, de sua parte, pode ser alegada a qualquer tempo, incidenter tantum no processo, e não precisa retroceder as situações jurídicas consolidadas, apenas as reputa como ineficazes especificamente para a ação executiva em progresso.
Nos termos do art. 792, do Código de Processo Civil, são estas as modalidades de fraude contra credores:
Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:
I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;
II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;
III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;
IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;
V - nos demais casos expressos em lei.
Com exceção do inciso IV - que importa análise com mais vagar, adiante -, todos os outros implicam em uma presunção, considerada em geral pela jurisprudência como sendo absoluta (STJ, 3ª Turma, REsp 1863999, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, Julg. 03.08.2021, DJe 09.08.2021; TJGO, 1ª Câmara Cível, AC 04563540420188090044, Rel. Desa. MARIA DAS GRAÇAS CARNEIRO REQUI, Julg. 04.04.2021, DJe 05.04.2021; TJRS, 16ª Câmara Cível, AC 70078227295, Rel. Desa. DEBORAH COLETO ASSUMPÇÃO DE MORAES, Julg. 23.08.2018, DJe 31.08.2018; TJRS, 16ª Câmara Cível, 70046625240, Rel. Des. PAULO SÉRGIO SCARPARO, Julg. 26.01.2012, DJe 31.01.2012), da ocorrência de fraude à execução se averbado, anteriormente à alienação ou oneração da coisa, em registro público, o ato constritivo levado a efeito contra o bem móvel ou imóvel, ou o próprio processo executivo.
Nesse sentido, aliás, dispõe o art. 828, caput e § 4º, do Código de Processo Civil, que a averbação no registro público do bem móvel ou imóvel de anotação premonitória, faz presumir, em caso de posterior alienação da coisa, a fraude à execução, in verbis:
Art. 828. O exequente poderá obter certidão de que a execução foi admitida pelo juiz, com identificação das partes e do valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, de veículos ou de outros bens sujeitos a penhora, arresto ou indisponibilidade. (...) § 4º Presume-se em fraude à execução a alienação ou a oneração de bens efetuada após a averbação.
Como se vê, independe, para caracterização da fraude à execução, se a coisa chegou de fato a ser constrangida, bastando apenas o anúncio público, pelo registro, da possibilidade futura de constrangimento. Por isso mesmo, evidentemente, se o bem é gravado de impenhorabilidade, estando fora do alcance do credor, ainda que possa ele levar a efeito a averbação premonitória da execução sobre a matrícula da coisa impenhorável, não restará caracterizada a fraude à execução, caso venha o devedor a dispor da coisa impenhorável, já que o bem está excluído, naturalmente, do catálogo de objetos contra os quais poderia o credor mover adiante pretensões constritivas:
Alerte-se, por outro lado, que tal situação é diferente do devedor criar uma situação de impenhorabilidade, reduzindo-se à insolvência, como nos casos em que aliena imóvel a terceiro e aduz que o que ficou para si é bem de família. A jurisprudência não perdoa cambalacho:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS DE TERCEIRO. AS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS FORAM UNÂNIMES EM APONTAR QUE O BEM EM QUE A ACIONADA E SEU ESPOSO RESIDEM NÃO É BEM DE FAMÍLIA, MOTIVO PELO QUAL NÃO DEVE SER EXCLUÍDO DA PENHORA EM PROCESSO EXECUTIVO DE CONDENAÇÃO POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO INTERNO DA IMPLICADA DESPROVIDO. (...) 6. Na presente demanda, é incontroverso nos autos que o bem sobre o qual se busca o afastamento da penhora não foi reconhecido pelas instâncias ordinárias como serviente à família. 7. Com efeito, a Corte Araucariana dissertou que não foram apresentadas provas incontestáveis acerca da condição do bem ora penhorado, visto que o simples fato de existir energia elétrica no imóvel (28.2) não demonstra que esteja ocupado e que nele resida a Apelada e seu esposo (...) Somado a esses fatos, que por si só já afastariam a caracterização do imóvel penhorado como bem família – ante a fragilidade das provas apresentadas – deve-se atentar que restou reconhecida a fraude à execução por parte do esposo da Recorrida nos autos 0005435-44.2000.8.16.0030, a qual considerou: as alienações dos imóveis matriculados sob o 34.070, 44.291, 60.388, 60.389 do 1o. C.R.I ineficazes perante o presente feito, posto que verificadas em fraude à execução (fls. 232/234). 8. Disse, ainda, o Tribunal Paranaense que o executado subtraiu seu patrimônio a um único bem imóvel, que, após ser constrito, foi levantado em razão da impenhorabilidade. (...) o executado alienou todos os demais imóveis que estavam em seu nome e, posteriormente, veio a Juízo alegar a impenhorabilidade com fundamento na lei do bem de família, sob o argumento de que se tratava do único imóvel e sua residência. Portanto, nítida a fraude na alienação dos demais imóveis que constituíam seu patrimônio, especialmente porque foram realizados a pessoas de sua família – descendente e genro (fls. 232/234). 9.
Por força dessas circunstâncias, a melhor interpretação para o caso está com o Tribunal Paranaense, que reformou a sentença para manter penhora do imóvel referenciado na lide. A violação a texto de lei federal é inocorrente na presente demanda. 10. Agravo Interno da parte implicada desprovido. (STJ, 1ª Turma, AgInt no AgInt no AREsp 1556270, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Julg. 11.11.2020, DJE 17.11.2020) (grifo nosso)
Ainda, por oportuno, é de bom alvitre salientar que no caso de penhora de crédito representado por título de crédito, o terceiro que eventualmente esteja de posse do título deverá depositar em juízo a quantia relativa para exonerar-se da obrigação (CPC, art. 856, § 2º). Caso se negue a fazê-lo e pague diretamente ao devedor, caracterizará, de pronto, fraude à execução (CPC, art. 856, § 3º).
A hipótese do inciso IV, por sua vez, depende da prova de duas circunstâncias, neste ponto assemelhando deveras a fraude à execução da fraude ao credor: (1) que a alienação ou oneração do bem é capaz de levar o devedor a insolvência, obstando por completo a satisfação do crédito exequendo – por exemplo, o devedor tem apenas um único bem e o aliena a terceiro; (2) que o terceiro adquirente agiu notoriamente de má-fé.
Tal hipótese abrange situações em que não há registro do processo executivo, nem de quaisquer atos constritivos levados a efeito contra o imóvel, por isso a importância de demonstrar-se que o terceiro agiu de má-fé e sabia, ou tinha como saber, da pendência de ação capaz de levar o devedor à insolvência.
Neste particular, o Código de Processo Civil, ope legis, distribui dinamicamente o ônus da prova e atribui, em verdade, ao terceiro a prova de que agiu com as cautelas necessárias à execução do bem, destaque-se:
Art. 792 (...) § 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
É dizer, não se admite o terceiro “João sem braço”, que nada fez para verificar a regularidade do bem. Não conseguindo provar, por meio das mencionadas certidões, que foi cauteloso, elide-se sua boa-fé.
De todo modo, em quaisquer dos casos, seja nas hipóteses dos incisos I, II, III e V, seja no caso peculiar do inciso IV, o Código de Processo Civil não faz mais que ecoar vetusta disposição da Súmula nº. 375 do Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Por fim, é importante ressaltar que, por mais que decorra da própria lei a presunção absoluta de fraude, deve-se facultar, em homenagem ao contraditório e à ampla defesa, ao terceiro adquirente a possibilidade de opor embargos de terceiro, na forma dos arts. 674 e ss., do CPC, em até quinze dias, ex vi do art. 792, § 4º