DA POSSIBILIDADE DE PENHORA DO FUNDO PARTIDÁRIO PARA SATISFAÇÃO DE DÍVIDA
O fundo partidário, instituto polêmico, que levanta muitas paixões na sociedade, visa, essencialmente, ao custeio de algumas atividades partidárias, conforme lista o art. 44, da Lei nº. 9.095/96. Dada sua centralidade no funcionamento dos partidos, o Código de Processo Civil revestiu a verba com o caráter da impenhorabilidade. Não obstante, a jurisprudência se divide entre afirmar essa regra como absoluta ou prever exceções.
Por certo, o fundo partidário tem, por finalidade, na forma do dispositivo supramencionado, a aplicação para “manutenção das sedes e serviços do partido, permitido o pagamento de pessoal, a qualquer título”, observados os limites dispostos nas alíneas do inciso I.
Outrossim, a verba do fundo pode ser utilizada para custear a “propaganda política e doutrinária” (inciso II), bem como “alistamento e campanhas eleitorais” (inciso III), “criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política” (inciso IV), “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres” (inciso V), “pagamento de mensalidades, anuidades e congêneres devidos a organismos partidários internacionais que se destinem ao apoio à pesquisa, ao estudo e à doutrinação política” (inciso VI), “pagamento de despesas com alimentação, incluindo restaurantes e lanchonetes” (inciso VII), “contratação de serviços de consultoria contábil e advocatícia e de serviços para atuação jurisdicional” (inciso VIII), “compra ou locação de bens móveis e imóveis, bem como na edificação ou construção de sedes e afins, e na realização de reformas e outras adaptações nesses bens” (inciso X), e “custeio de impulsionamento, para conteúdos contratados diretamente com provedor de aplicação de internet com sede e foro no País, incluída a priorização paga de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet” (inciso XI).
Assim, suponhamos, neste momento, que determinada empresa prestadora de serviços de marketing tenha sido regularmente contratada pelo diretório municipal do “Partido X” para confecção de panfletos relacionados à divulgação de material com conteúdo ideológico, que seja de interesse da organização partidária distribuir entre seus potenciais eleitores e militantes.
Feito o serviço, e apresentada a conta, suponhamos que o referido diretório resolva não honrar o acordo, e deixe de pagá-la, não restando escolha à empresa prestadora de serviços que não o ingresso com uma ação de cobrança.
Tramitado regularmente o processo, a empresa exequente descobre que o diretório não tem bens no seu nome, e não consegue sucesso na penhora do numerário, seja por BACENJUD ou SISBAJUD, mas identifica que a organização recebe regularmente repasses, dos diretórios estaduais ou nacionais, relativos ao fundo partidário. Por conseguinte, peticiona ao Juízo a penhora dessas verbas.
Pois bem, em uma primeira vista, a pretensão encontraria óbice no art. 833, inciso XI, do Código de Processo Civil que declara como impenhoráveis, entre outros, os “recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei”.
Imediatamente se erige a questão: neste caso, a regra de impenhorabilidade retro colacionada tem aplicação absoluta ou comporta exceções?
Alguns tribunais entendem que a regra em apreço é absoluta, destaque-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL EM FACE DO PARTIDO DOS TRABALHADORES. PENHORA DE VERBAS DO FUNDO PARTIDÁRIO. LIMITAÇÃO DO BLOQUEIO A TRINTA POR CENTO (30%) DO MONTANTE DEPOSITADO EM CONTA CORRENTE DO PARTIDO, ORIUNDO DESSE FUNDO. IMPENHORABILIDADE TOTAL DAS VERBAS. ART. 833, XI, DO CPC. LIBERAÇÃO DO BLOQUEIO DE TODOS OS VALORES REMANESCENTES DO FUNDO PARTIDÁRIO. MANUTENÇÃO DA PENHORA DE VERBAS ORIUNDAS DE RECEITAS PARTIDÁRIAS DIVERSAS. 1. Nos termos do art. 833, inciso XI, do CPC, são impenhoráveis os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei, não sendo cabível o bloqueio sobre verbas dessa natureza, salvo quando verificadas as exceções previstas em lei. 2. De fato, consoante alegado pela parte agravada, o CPC/2015 deixou de fazer referência ao caráter absoluto das hipóteses de impenhorabilidade enumeradas taxativamente nos incisos do caput do art. 833 do CPC, que antes existia na redação do preceito legal do CPC/1973 a ele correspondente, qual seja, o art. 649, caput, do CPC/1973. 3. A hipótese específica do inciso XI do art. 833 do CPC, não comporta relativização, exceto em casos expressos na legislação, porquanto as verbas oriundas do Fundo Partidário têm natureza pública, destinada à finalidade de permitir que os partidos cumpram seu papel constitucional, qual seja, "assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal" (art. 1º, da Lei n.º 9.096/95). Justamente pelo caráter público dessas verbas e pela importância do papel exercido pelos partidos políticos, na ordem jurídica brasileira, é que se instituiu a impenhorabilidade dos recursos originários desse fundo, visando assegurar que não venham a sofrer constrição judicial. Ademais, tal previsão legal não imuniza os partidos políticos da obrigação de pagar seus débitos, pois tais agremiações possuem outras fontes de receitas, que são penhoráveis. 4. É majoritário na jurisprudência deste egrégio Tribunal de Justiça, já sob a égide do CPC/2015, o entendimento de que as verbas oriundas do fundo partidário são absolutamente impenhoráveis. 5. A obrigação dos Tribunais de Segundo Grau, imposta pelo art. 926, do CPC, de uniformizar sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente, impõe que estes respeitem seus próprios precedentes. Assim, a orientação que melhor se coaduna com esse dever imposto aos Tribunais é a que trilha o caminho sedimentado pelos precedentes majoritários do Tribunal, pois o julgado mencionado na decisão agravada e nas contrarrazões da recorrida é isolado na jurisprudência deste Tribunal de Justiça. 6. Não se extrai da leitura do art. 44, da Lei nº 9.096/95, hipótese de exceção à impenhorabilidade das verbas oriundas do Fundo Partidário, invocada pela decisão do juízo singular que determinou a manutenção da constrição sobre trinta por cento (30%) do montante oriundo do fundo partidário. Tal raciocínio contraria o princípio de hermenêutica segundo o qual as exceções se interpretam restritivamente. 7. Ademais, se o art. 44, da Lei n.º 9.096/95, exige que os recursos do Fundo Partidário sejam empregados apenas para as finalidades previstas em seus incisos, admitir que a utilização para o fins mencionados nos incisos II ("propaganda doutrinária e política") e III ("alistamento e campanhas eleitorais") constituiria exceção à impenhorabilidade das verbas originadas desse fundo implicaria o completo esvaziamento da regra do art. 833, inciso XI, do CPC, ou a exegese de que somente no caso de utilização das verbas do Fundo Partidário para fins diversos dos previstos no art. 44, da Lei n.º 9.096, ou seja, ilícitos, haveria a proteção da impenhorabilidade. 8. Cabível a penhora de valores decorrentes de receitas próprias do partido, depositadas em conta corrente de sua titularidade. Tais verbas não são enquadradas em quaisquer das espécies de impenhorabilidade previstas no art. 833, do CPC. 9. A especial relevância que a ordem constitucional atribuiu aos partidos políticos não permite admitir que as agremiações partidárias possam se furtar ao pagamento de seus débitos à conta apenas de tal circunstância. Além disso, a agremiação não pode invocar o argumento de que o bloqueio de seus valores poderá resultar na falta de pagamento de seus compromissos para tentar se eximir exatamente do cumprimento de uma de suas obrigações. 10. Agravo parcialmente provido. (TJDFT, 4ª Turma Cível, 07238949420208070000, Rel. Des. ARNOLDO CAMANHO, Julg. 04.08.2021, DJe 09.08.2021) (grifo nosso).
Todavia, semelhante entendimento conferiria uma carta branca a todas as instâncias partidárias para criarem dívidas irresponsáveis, se escudando numa proteção legal que, certamente, não tinha por intuito assegurar o locupletamento indevido dos diretórios partidários. Aliás, tal entendimento cria, ainda, um incentivo perverso para que os partidos políticos abusem de sua posição privilegiada contra atores privados, o que é bastante periclitante dentro de uma cultura historicamente patrimonialista como a brasileira.
Por tal razão, uma jurisprudência mais arguta vem conferindo exceções à referida impenhorabilidade, da seguinte maneira:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. NORMA EM BRANCO. DIRETÓRIOS REGIONAIS DE PARTIDOS POLÍTICOS NO DISTRITO FEDERAL. RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO. PENHORA. DÍVIDA CONTRAÍDA PARA PROPAGANDA DOUTRINÁRIA E POLÍTICA DO PARTIDO. POSSIBILIDADE. 1. A impenhorabilidade de recursos públicos oriundos do Fundo Partidário não é absoluta e deve observar a natureza das despesas a que se destinam a pagar. 2. Os recursos públicos oriundos do Fundo Partidário, na forma expressa do art. 833, XII do CPC são, a princípio, impenhoráveis, como os demais bens e direitos arrolados com a mesma cláusula. 3. Há exceções a essa impenhorabilidade: a) A impenhorabilidade do Fundo Partidário se dá nos termos da lei, o que quer dizer que há uma lei de regência da sua finalidade, que preenche o 'branco legal da norma processual, com remissão ao conceito de norma em branco. b) A impenhorabilidade contida no § 1º do mesmo artigo, que também deve ser analisada no caso dos Partidos políticos: "A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição." 4. Quanto aos recursos públicos oriundos do Fundo Partidário, é necessário aferir se se trata de execução de dívida contraída para atender a alguma daquelas rubricas a que se destinam, arroladas no art. 44 da Lei nº 9.096/1995. 5. Como a dívida de Diretórios Regionais de Partidos políticos no Distrito Federal, tratada neste processo, decorreu da aquisição de bens e serviços para propaganda doutrinária e política - expressamente arrolada no inciso II do art. 44 da Lei nº 9.096/1995 - fornecidos pela empresa credora, não há razão legal para não se permitir a penhora. A objeção ao pagamento da dívida com recursos do Fundo Partidário, neste caso, decorreu de opção dos dirigentes partidários e não de óbice legal, cabendo a intervenção do Poder Judiciário para a satisfação forçada da obrigação. 6. Recurso conhecido e provido. (TJDFT, 8ª Turma Cível, 07257096320198070000, Rel. Desa. NÍDIA CORRÊA LIMA, Julg. 03.06.2020, DJe 16.06.2020) (grifo nosso)
O raciocínio é escorreito. A lógica da impenhorabilidade do fundo está em assegurar que uma verba pública, essencial para o funcionamento dos partidos, eles mesmos instituições fundamentais para a democracia, não acabe sendo esvaziada por atores privados.
No entanto, não foi objetivo do legislador sancionar o enriquecimento ilícito das organizações partidárias. Se o fundo tem por finalidade, entre outras, custear despesas com propaganda política ou partidária, e com alistamento ou campanha eleitoral, é bastante razoável e proporcional que seja utilizado para o pagamento de dívidas contraídas na persecução dessas atividades.
A ausência de intervenção do judiciário nesse sentido, poderia configurar inegável violação, entre outros, ao princípio republicano, bem como ao princípio da igualdade, isso porque todos são iguais perante a lei, até mesmo os partidos políticos.