DECISÃO DO STF PROÍBE ABATE IMEDIATO DE ANIMAIS VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS
O ordenamento jurídico brasileiro, seguindo as tendências firmadas pela medicina veterinária, tem caminhado para classificar os animais como seres sencientes, isto é, sujeitos de direitos despersonalizados, capazes de demonstrar emoções, como o sofrimento e angústia, afastando-se a consideração civil então vigente que os entendia como bens móveis (coisas). Nessa seara, discute-se no campo jurídico o direito dos animais de receberem a tutela necessária de proteção à vida, à segurança e ao seu bem-estar.
No que tange a este contemporâneo entendimento, cumpre destacar o Projeto de Lei da Câmara nº 27 de 2018, em trâmite perante o Congresso Nacional, que visa alterar a Lei nº 9.605/98 para dispor que os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos de direitos despersonificados, devendo gozar e obter tutela jurisdicional em caso de violação, vedando-se o seu tratamento como coisa.
Nesse cenário, no dia 17 de setembro de 2021, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 640, decidiu de forma unânime pela procedência da referida ação, a fim de declarar a ilegitimidade da interpretação dos artigos 25, §§1º e 2º da Lei nº 9.605/1998, bem como os artigos 101, 102 e 103 do Decreto nº 6.514/2018 e demais normas infraconstitucionais que autorizem o abate de animais apreendidos em situação de maus-tratos.
O Relator, o Ministro Gilmar Mendes, ressaltou em seu voto1 que a Constituição Federal possui norma expressa que impõe a proteção à fauna e proíbe qualquer espécie de maus-tratos aos animais, sendo certo que o dever de preservar o meio ambiente é do Poder Público e de toda a coletividade, conforme extrai-se do artigo 225, caput e parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
1 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/9/590882087B7EE8_voto-gilmar.pdf
Na ADPF verificou-se a existência de decisões judiciais que autorizavam o abate imediato dos animais apreendidos em situação de maus-tratos. A título de exemplificação juntou-se decisão referente a galos de rinha resgatados, na qual tanto o Ministério Público quanto o IBAMA opinaram pelo abate dos animais face à inviabilidade de dar a estes outro destino, bem como por conta da alegada ausência de estrutura física para alojamento dos animais.
Nos termos do voto do relator, as manifestações, bem como as decisões proferidas pelo Poder Judiciário, demonstram que a situação de maus-tratos imposta por criadores particulares é reverberada pela omissão estatal na proteção dessas espécies, pois consideram que os animais treinados desde cedo para ferir outros, como os galos de rinha, devem ser abatidos, em claro círculo vicioso de exploração e crueldade contra os animais, o que pode culminar em sua extinção.
Outrossim, importa salientar que inexiste autorização legal expressa que possibilite o abate de animais nos casos de apreensão em situação de maus-tratos, conforme extrai-se da literalidade do artigo 25 da Lei nº 9.605/1998 e do artigo 107 do Decreto nº 6.514/2018:
Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos. § 1o Os animais serão prioritariamente libertados em seu habitat ou, sendo tal medida inviável ou não recomendável por questões sanitárias, entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, para guarda e cuidados sob a responsabilidade de técnicos habilitados. § 2o Até que os animais sejam entregues às instituições mencionadas no § 1o deste artigo, o órgão autuante zelará para que eles sejam mantidos em condições adequadas de acondicionamento e transporte que garantam o seu bem-estar físico.
Art. 107. Após a apreensão, a autoridade competente, levando-se em conta a natureza dos bens e animais apreendidos e considerando o risco de perecimento, procederá da seguinte forma: I - os animais da fauna silvestre serão libertados em seu hábitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações, entidades de caráter cientifico, centros de triagem, criadouros regulares ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados, podendo ainda, respeitados os regulamentos vigentes, serem entregues em guarda doméstica provisória. II - os animais domésticos ou exóticos mencionados no art.103 poderão ser vendidos; III - os produtos perecíveis e as madeiras sob risco iminente de perecimento serão avaliados e doados. § 1 o Os animais de que trata o inciso II, após avaliados, poderão ser doados, mediante decisão motivada da autoridade ambiental, sempre que sua guarda ou venda forem inviáveis econômica ou operacionalmente. § 2 o A doação a que se refere o § 1o será feita às instituições mencionadas no art. 135. § 3 o O órgão ou entidade ambiental deverá estabelecer mecanismos que assegurem a indenização ao proprietário dos animais vendidos ou doados, pelo valor de avaliação consignado no termo de apreensão, caso esta não seja confirmada na decisão do processo administrativo. § 4 o Serão consideradas sob risco iminente de perecimento as madeiras que estejam acondicionadas a céu aberto ou que não puderem ser guardadas ou depositadas em locais próprios, sob vigilância, ou ainda quando inviável o transporte e guarda, atestados pelo agente autuante no documento de apreensão. § 5o A libertação dos animais da fauna silvestre em seu hábitat natural deverá observar os critérios técnicos previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade ambiental competente.
Ademais, o artigo 25 da Instrução Normativa nº 19/2014 do IBAMA prevê modalidades de destinação distintas para cada caso, tais como soltura dos animais silvestres em seu habitat natural ou em cativeiros, como zoológicos, fundações, entidades de caráter científico, criadouros regulares, e outros; e no caso de animais domésticos venda, leilão ou doação, razão pela qual a interpretação das referidas normas para autorizar o abate em seguida à apreensão é entendida pela Corte como inconstitucional.
Portanto, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 640 configura-se como um importante marco no avanço da proteção jurídica dos animais, o que vai ao encontro do disposto na Constituição Federal e do entendimento modernos de que estes são seres sencientes e não meras coisas postas ao dispor dos seres humanos.