DOS CRIMES COMETIDOS CONTRA A HONRA
Frequentemente pessoas se referem a políticos, vizinhos, amigos e até ao próprio cônjuge com termos, digamos, pouco elogiosos. Nesse contexto, é possível que o ofendido, ao tomar conhecimento da ofensa, profira energicamente a seguinte expressão: “ora, isto é uma calúnia, difamação e uma injúria!”.
A confusão entre os termos é notável, às vezes são popularmente intercambiáveis, com pessoas verdadeiramente se embananado em diferenciar um crime do outro, inventando hierarquias imaginárias (como a de que a difamação é pior que a calúnia, mas nada supera a injúria) ou até mesmo jurando que difamar não é crime, mas modo de dizer.
De acordo com o Código Penal, são crimes contra a honra a calúnia (art. 138), a difamação (art. 139) e a injúria (art. 140). É importante ter atenção em cada palavra utilizada para descrever a conduta típica de cada uma dessas espécies penais.
Caluniar alguém significa a imputação pública de fato criminoso a uma pessoa (neste caso, viva ou já falecida). Isso significa que não há calúnia se, numa discussão privada, alguém acusa outrem de crime, e não há terceiro por perto para testemunhar o ocorrido. Com efeito, em tais circunstâncias a imputação de fato criminoso não foi pública, sendo a conduta praticada na hipótese inegavelmente atípica.
Outro aspecto comezinho do crime de calúnia é que devem ser imputados fatos, não qualificações, isto é, se João chama Pedro de ladrão, potencialmente pratica o crime de injúria, mas não de calúnia. “Ladrão” não é um fato, mas uma qualidade, a afastar a espécie penal em análise.
Além disso, a calúnia exige a imputação de um certo tipo de fato, qual seja, a prática de um crime. Assim, se Carlos aduz que Maria pratica condutas desabonadoras ou contravenções penais (que são diferentes dos crimes), não incorrerá no crime de calúnia. E aquele que divulga ou propala o fato criminoso imputado, sabendo ser falsa a informação, responde criminalmente da mesma maneira.
É possível afastar a condenação pelo crime de calúnia mediante a chamada “exceção da verdade”, desde que:
- Não se trate de crime de ação privada, exceto se o ofendido foi condenado por sentença irrecorrível;
- A ofensa não seja dirigida ao Presidente da República ou contra chefe de governo estrangeiro;
- O imputado não tenha sido absolvido, em sentença irrecorrível, de crime de ação penal pública.
A lógica aqui é cristalina: evidentemente, se há provas concretas de que alguém cometeu crime, não há de se falar em conduta caluniosa. Ressalte-se, no entanto, que isso não é necessariamente verdade para a difamação, que admite exceção da verdade apenas quando a honra objetiva de funcionário público é vilipendiada nesta condição em particular.
Desse modo, é possível o cometimento do crime de difamação, ainda que a vítima fale absolutamente a verdade. Suponha que Henrique é diretor de multinacional e tem como desafeto César Augusto. Eis que, em certa reunião do conselho diretor, com vistas a desacreditar a gestão de Henrique, César Augusto revela a prática de adultério por parte de Henrique contra sua esposa. Mesmo que, de fato, Henrique seja adúltero, ainda assim estaria tipificada a conduta de difamação.
O crime de difamação é residual, assim, ao de calúnia, ou seja, a imputação de quaisquer fatos que ofendam a honra objetiva da vítima, mas que não constituam crime, é capaz de configurar difamação. Aqui, todas as regras acima elencadas se aplicam: a imputação deve ser de fato, não qualidade, e deve ser pública, é dizer, na presença de outras pessoas, sendo a grande diferença que, nesse caso, os fatos imputados não podem constituir crime.
E a injúria? A injúria ocorre quando se ofende uma pessoa. Ofender é imputar qualidade negativa sobre a pessoa. E mais: a injúria tipifica a violação da honra subjetiva. Honra objetiva é o bom nome, a reputação, do ofendido, perante a sociedade. Honra subjetiva, por outro lado, é interna, diz respeito ao próprio senso de dignidade do indivíduo, isto é, trata da autopercepção, da autoestima. Como mencionado, ofensas à honra subjetiva são tipificadas como injúria, enquanto ofensas à honra objetiva são tipificadas como difamação ou calúnia, a depender do que se imputa ao ofendido.
Quando se analisa a espécie penal, dentro da chamada teoria do crime, é útil separar os elementos do tipo em aspectos objetivo (formal – sistemático, e material – conglobante) e subjetivo (volição – dolo, culpa - e cognoscência – possibilidade de atualizar o conhecimento sobre a conduta praticada). Nesse sentido, nos crimes contra a honra, do ponto de vista da vontade do agente (aspecto subjetivo do tipo), imprescindível a prova do chamado “dolo específico”, isto é, da vontade de ofender ou, na consagrada expressão, animus injuriandi vel difamandi vel calunniandi.
A mera crítica ou brincadeira (por mais grosseira que seja) não pode ser penalizada, lembrando que é direito fundamental a liberdade de expressão, o que inclui o direito de se dizer coisas desagradáveis, mormente contrárias ao consenso da maioria da sociedade. Nesses casos, provavelmente o tribunal dirá que o animus criticandi vel jocandi afasta a tipicidade da conduta.
Também não constitui difamação ou injúria a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador, nem o conceito desfavorável emitido por funcionário público, quando estiver cumprindo seu dever. Não obstante, aquele que der publicidade a essas declarações, com o objetivo de causar dando à honra da pessoa, responderá pelo crime.
Na injúria, ainda, é imprescindível que o agente do delito tenha consciência de que a ofensa dirigida vá chegar ao conhecimento do ofendido. Ou seja, é possível a configuração de injúria mesmo que não seja proferida diretamente contra a pessoa, desde que o criminoso saiba (aspecto subjetivo do tipo) que a ofensa chegará ao conhecimento daquela.
Nesta toada, se Mário liga para Fábio e xinga a José, sem saber que José está ouvindo a ligação, não poderá ser acusado de conduta injuriosa, veja-se:
RECURSO ESPECIAL. PENAL. INJÚRIA RACIAL. ART. 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL. MOMENTO DA CONSUMAÇÃO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA NA ORIGEM. APELAÇÃO MINISTERIAL PROVIDA. 1. A absolvição sumária operada pelo Juízo de piso afastou o dolo específico de ofender a honra subjetiva da vítima, em razão da ausência de previsibilidade de que as palavras injuriosas chegassem ao seu conhecimento. As palavras injuriosas foram proferidas em conversa telefônica com outra interlocutora, razão pela qual a vítima só teve conhecimento por as ter ouvido, acidentalmente, pela extensão telefônica. 2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assenta que o momento da consumação do delito de injúria acontece quando a vítima toma conhecimento da ofensa (precedentes). 3. A recorrente, ao saber que o seu superior hierárquico, vítima no caso, não havia abonado sua falta, proferiu palavras injuriosas por meio telefônico, não sendo previsível que a vítima estivesse ouvindo o teor da conversa pela extensão telefônica. Como a injúria se consuma com a ofensa à honra subjetiva de alguém, não há falar em dolo específico no caso em que a vítima não era seu interlocutor na conversa telefônica. 4. Recurso especial provido.
(STJ, Sexta Turma, REsp 1765673, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Julg. 26.05.2020, DJe 29.05.2020) (grifo nosso)
Não há de se falar em crime de injúria em caso de retorsão imediata ou quando o injuriado deu azo à injúria. De outro lado, é importante salientar que o crime de injúria pode ser cometido não apenas por palavras, mas também por atos. Famoso exemplo do saudoso Nelson Hungria é o da pessoa que se recusa a apertar a mão de outra, com clara intenção de demonstrar despeito.
E a depender do grau da ofensa é possível que a injúria se qualifique. Atirar fezes no ofendido ou estapeá-lo, por exemplo, aumentam a reprobabilidade da conduta, tipificada como “injúria real”, veja-se:
Art. 140 (...) § 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.
E se consistir em ofensa de cunho racial, a reprovação é ainda maior:
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
Pena - reclusão de um a três anos e multa.
Por fim, destaque-se que a pena será majorada caso a ofensa (em qualquer das modalidades) seja dirigida ao Presidente da República, a chefe de governo estrangeiro ou contra funcionário público, em razão de suas funções. E será majorada, no caso de calúnia ou difamação, também quando a ofensa for dirigida a maior de 60 (sessenta anos) ou a pessoa portadora de deficiência. Outrossim, a pena será aplicada em dobro, se o crime for cometido mediante paga ou promessa de recompensa.
Ressalte-se que os crimes supra elencados são, via de regra, crimes de ação penal privada, isto é, só levarão ao pronunciamento jurisdicional se manifestada a queixa-crime pelo interessado em até seis meses do conhecimento da autoria do fato.