ENTENDA A DECISÃO DEFINITIVA DE MÉRITO DO STF QUE INVALIDOU A TESE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
A TESE DA LEGITIMA DEFESA DA HONRA
O instituto da legítima defesa está previsto no art. 25 do Código Penal, sendo considerado uma excludente de ilicitude, conforme o art. 23, inciso II do mesmo diploma legal.
Consistente na escusa legal para que o indivíduo, em razão de injusta agressão atual ou iminente, possa repeli-la utilizando- se dos meios necessários para tanto, certo é que tal instituto não especifica quais bens jurídicos estão por ele protegidos.
Foi neste espaço que a legítima defesa da honra se desenvolveu. A referida tese jurídica, apesar de não estar necessariamente atrelada aos crimes passionais, é tradicionalmente usada na defesa de réus que cometem crimes motivados por uma violenta emoção, a fim de afastar a tipicidade da conduta delituosa.
Para tanto, alega- se que o bem jurídico honra, que decorre da proteção constitucional dos direitos de personalidade, estava sob agressão atual ou iminente, tendo o sujeito injustamente ofendido reagido para defendê-la.
A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA APLICADA AOS CRIMES DE FEMINICÍDIO
O feminicídio, introduzido pela Lei nº 13.104/2015 e previsto no inciso VI, art. 121 do Código Penal, é uma qualificadora do crime de homicídio doloso, caracterizada pelo assassinato cometido contra uma mulher motivado por razões da condição do sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Comumente, e não por acaso, os crimes de feminicídio estão relacionados à infidelidade conjugal ou ciúme, os chamados crimes passionais, em que os indivíduos que os cometem, em teoria, encontram- se movidos por uma violenta emoção.
A legítima defesa da honra surge nestes contextos para afastar a tipicidade do crime de feminicídio, ao passo que sustenta que o homicídio foi cometido para repelir uma injusta agressão contra a honra do homicida.
Ou seja, esta tese jurídica defende que o bem jurídico honra é tão ou mais valioso que o bem jurídico vida, ao ponto de ser usada como justificativa para o cometimento do homicídio.
A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 779 E A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Em 30 de dezembro de 2020 o PDT – Partido Democrático Trabalhista distribuiu a ADPF nº 779 perante o Supremo Tribunal Federal, cujo objetivo é que seja dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, a fim de se afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos.
O partido esclarece que, dentre os objetivos da ação está a pretensão da discussão sobre o conteúdo jurídico do instituto da legítima defesa, possibilitando excluir a honra do âmbito de aplicação.
O promovente sustenta o cabimento da ação em razão da controvérsia constitucional, evidente em decisões do Tribunal de Justiça que ora validam, ora anulam, os veredictos do Tribunal do Júri que absolvem réus processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese da legítima defesa da honra, bem como das divergências de entendimento sobre o tema entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.
No mérito, em resumo, defende que admitir interpretação dos dispositivos infraconstitucionais que permita a absolvição do indivíduo que mata uma mulher sob o argumento de proteção da honra em decorrência de uma traição, é admitir uma interpretação incompatível com os direitos fundamentais à vida, a não discriminação das mulheres, os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade e da proporcionalidade.
Portanto, a aceitação da interpretação resultante da aplicação da tese da legitima defesa da honra implicaria diretamente na violação dos arts. 1º, caput e inciso III; 3º, inciso IV, e 5º, caput e inciso LIV, da Constituição Federal.
Sob relatoria do Ministro Dias Toffoli, em 26 de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal, ao deferir parcialmente o pedido liminar, fixou o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF), conferindo interpretação conforme a Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa.
Como consequência da interpretação dada, a defesa baseada, direta ou indiretamente, na legítima defesa da honra, seja na fase pré-processual ou processual, bem como no julgamento do Tribunal do Júri, será considerada nula, assim como o julgamento dela decorrente.
Em razão da adoção do rito abreviado adotado pelo Ministro Relator, previsto no art. 12 da Lei 9.868/99, após a decisão cautelar, o processo foi levado à julgamento perante o Plenário, e, finalmente, em 12 de março de 2021, a Corte Constitucional decidiu por unanimidade de votos, confirmando a decisão liminar, declarando, assim, a invalidade da tese da legítima defesa da honra, excluindo- a do âmbito do instituto da legítima defesa.
DO VOTO RELATOR
O Ministro Relator Dias Toffoli, atual presidente do STF, sustentou a incompatibilidade da legítima defesa da honra com o ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com a Constituição Federal, a partir dos seguintes argumentos.
Da atecnia da tese da legítima defesa da honra
A caracterização do instituto da legítima defesa exige a conjunção dos elementos previstos no art. 25, quais sejam, a agressão atual ou iminente contra direito próprio ou de terceiros, entendida como a ameaça ou lesão a um bem jurídico, que deve ser repelida por meios moderados e necessários, com o exclusivo objetivo de defesa.
Nesse sentido, a agressão não pode ser passada ou futura, bem como a resposta a ela não pode ser excessiva, ao ponto de ultrapassar o animus defendendi.
Além dos requisitos objetivos, exige- se a presença de um elemento subjetivo, caracterizado pelo conhecimento do agente de que este se encontra nessa condição.
Assim, a ofensa a honra surge de um desvalor que reside no âmbito ético e moral, ou seja, refere- se a um atributo pessoal do ofendido. Por esse motivo, encontra- se tutelada pela Constituição, que prevê o direito de resposta, bem como está resguardada no capítulo do Código Penal destinado aos crimes contra a honra, quais sejam a calúnia, injúria e difamação.
É por essa razão, inclusive, que o art. 28 do diploma supramencionado veda expressamente a alegação de emoção ou paixão como excludente de imputabilidade.
Portanto, carece a caracterização de um direito subjetivo de agir contra suposta ofensa, no âmbito da legítima defesa, ao passo que existem meios jurídicos específicos para sua compensação.
Da ofensa constitucional à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e ao direito à vida e à igualdade
O Ministro classifica a tese da legítima defesa da honra como um recurso argumentativo odioso, desumano e cruel, usado para perpetrar no sistema jurídico e na sociedade a violência contra as mulheres, imputando-as a causa de suas próprias mortes ou lesões.
Isso porque, com suas raízes arcaicas, esta tese se sustenta na defesa da honra masculina, já prevista à época colonial, no Livro V, Título XXXVIII, das Ordenações Filipinas, que autorizava ao homem matar sua esposa quando do cometimento de adultério, bem como no Código Criminal do Império de 1830 e no Código Penal da República de 1890, nos quais o adultério era considerado crime, em que para o homem, exigia- se a comprovação de uma relação extraconjugal estável e duradoura, e para as mulheres, bastava a presunção da ocorrência.
Diante da atual configuração do ordenamento jurídico brasileiro, em que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil, consoante art. 1º, inciso III da CF/88, é claro que a tese da legítima defesa da honra, nas palavras do relator, “normaliza e reforça uma compreensão de desvalor da vida da mulher, tomando-a como ser secundário cuja vida pode ser suprimida em prol da afirmação de uma suposta honra masculina”.
Nesse sentido, também viola diretamente os art. 3º, inciso I e IV, bem como art. 5º, caput e inciso I, todos da Constituição.
Tribunal do júri e plenitude de defesa
Sendo a plenitude de defesa um princípio constitucional, previsto no rol dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “a”), admite- se argumentos jurídicos e não jurídicos para o convencimento dos jurados que compõe o Tribunal do Júri.
Entretanto, em razão da inexistência de garantias individuais de ordem absoluta, é que a cláusula tutelar da plenitude de defesa, na compreensão do Relator, não pode servir para salvaguardar a prática de atos ilícitos, principalmente do feminicídio ou qualquer outra forma de violência contra a mulher.
Da ressalva quanto ao art. 483, §2º do Código de Processo Penal: a soberania dos veredictos
O art. 483 do Código de Processo Penal, prevê, em seu parágrafo 2º a possibilidade de absolvição genérica ou por clemência do acusado, quando a materialidade do fato e a prova de autoria ou participação forem consideradas suficientes por mais de três jurados:
Art. 483. Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:
(...)
§ 2o Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação:
O jurado absolve o acusado?
Nesse sentido, o autor da ADPF defende que o princípio da soberania dos veredictos deve ser interpretado com certas ressalvas para evitar que, nos casos de feminicídio em que se lança mão da tese da legítima defesa da honra, o controle judicial não possa alcançar a utilização da referida tese.
No entendimento do Relator, assim como ocorreu no julgamento do HC nº 178.777/MG, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, a absolvição decorrente do art. 483, §2º, do CPP, é genérica, ao passo que não há vinculação com as teses ou provas produzidas, não podendo, portanto, a decisão do Tribunal do Júri ser alcançada por eventual alegação de nulidade por contrariedade às provas.
Entretanto, por considerar a tese da legítima defesa da honra um meio incompatível com todos os ditames constitucionais e se revelar estratégia cruel e odiosa, se a absolvição com base no supracitado artigo se der a partir da utilização da tese reclamada, o controle judicial poderá alcançar o veredicto do Tribunal do Júri, podendo declara-lo nulo, mediante recurso de Apelação da Acusação.
DOS VOTOS COM RESSALVAS
Apesar da unanimidade para rechaçar a legítima defesa da honra do ordenamento jurídico pátrio, os Ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luis Roberto Barroso, ao acompanharem o voto do Ministro Relator, fizeram algumas ressalvas.
O Ministro Gilmar Mendes concluiu que não somente a defesa, mas também a acusação, a autoridade policial e o juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré- processual ou processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, devem se sujeitar à vedação da utilização da legítima defesa da honra.
Para o Ministro Edson Fachin, “a decisão do júri, para que seja minimamente racional e não arbitrária, deve permitir identificar a causa de absolvição.”, de modo a permitir ao Tribunal de Apelação o controle mínimo dessa racionalidade, evitando a absolvição – ainda que não explicitada nos autos – pela inconstitucional legítima defesa da honra.
Nesse mesmo sentir, o Ministro Luis Roberto Barroso ressaltou que o voto do Relator possibilita uma brecha para que a defesa utilize a objurgada tese, conquanto a acusação teria de demonstrar que a tese foi, direta ou indiretamente, utilizada pela defesa, o que pode ser de difícil demonstração nos casos concretos.
Assim, concluiu que “é importante que o Tribunal deixe claro o cabimento do recurso de apelação previsto no art. 593, § 3°, do CPC (sic) em tais hipóteses. Em outros termos, afirmar o cabimento da apelação fundada na decisão do Tribunal do Júri contrária à prova dos autos – submetendo-se o réu a novo julgamento – em todos os casos de feminicídio.”