EXISTE RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FIM DO AMOR?
O fim de um relacionamento amoroso comumente não é um momento fácil na vida de um casal. Notadamente, quando esse relacionamento acaba se consolidando em uma relação conjugal e esta termina em separação e divórcio, o momento se torna ainda mais tumultuado e difícil, visto que passa a envolver não somente questões sentimentais, mas também patrimoniais.
Nesse sentido, não são poucas as vezes que o Poder Judiciário se depara com os divórcios litigiosos em razão das desavenças decorrentes da inconformidade de uma das partes com o fim da relação ou das insatisfações relativas a questões como divisão dos bens que compõe o patrimônio comum do casal, guarda e visitação dos filhos, bem como sobre os alimentos devidos à prole ou, até mesmo, ao cônjuge necessitado. Ainda, e não por acaso, justamente por não aceitarem o fim da relação, algumas vezes os cônjuges tentam buscar uma reparação emocional pelo sofrimento do fim através de uma indenização em dinheiro, embasando o pedido em suposto dano moral.
As questões citadas acima que permeiam um processo de divórcio encontram previsão legal, cuja normativa está alocada, em suma, na Lei nº 6.515/77, no Código Civil e no Código de Processo Civil, bem como jurisprudencial, voltada a suprir eventuais lacunas e contornos que a legislação vigente não estabelece objetivamente.
Dentro desse contexto, com o presente artigo pretende-se analisar o pedido de ressarcimento por dano moral no bojo de um processo litigioso de divórcio ou em decorrência deste. Para isso, insta destacar alguns aspectos doutrinários e legais acerca do dano moral.
Sobre sua conceituação coexistem duas correntes, a subjetiva, para qual o dano moral advém da dor, sofrimento ou humilhação experimentado pelo indivíduo, e a corrente objetiva, que o define como um dano decorrente da lesão à um direito de personalidade. Para a segunda corrente, a configuração do dano moral indenizável independe da experimentação de qualquer sofrimento, pois a violação desse direito provoca, por si só, dano moral indenizável, conforme reforça o Enunciado 445 da V Jornada de Direito Civil:
“O dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento.”
Assim, nota- se que o dano moral surge da violação de um direito, ou seja, da prática de um ato ilícito que atinge a esfera da personalidade humana, haja vista que não implica somente em questões meramente materiais. E como todo ato ilícito, gera o dever de indenizar nos termos dos art. 186, 187 e 927, todos do Código Civil:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Portanto, no contexto de um processo de divórcio litigioso, reconhecer o dano moral indenizável de um, importa em reconhecer que a outra parte cometeu um ato ilícito ao exercer o direito de não mais dar continuidade àquela relação conjugal, o que não encontra guarida no ordenamento jurídico vigente, já que o exercício regular de um direito não caracteriza ato ilícito, vejamos:
CC/2002, Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
No tema, vale destacar a alteração trazida pela Emenda Constitucional nº 66 de 2010, ao art. 226, § 6º, da Constituição Federal, que aboliu o requisito temporal para requerer o divórcio, bem como dispensou a necessidade de demonstração da culpa conjugal para pleiteá-lo, ou seja, a demonstração da violação dos deveres conjugais pelo outro não é mais obrigatória para iniciar o processo.
Desse modo, a fim de proteger a liberdade e a autonomia privada do cônjuge ou companheiro que não deseja mais continuar aquela relação, a ofensa aos deveres conjugais previstos no art. 1.566 do CC/2002 e da união estável, previstos no art. 1.724 do mesmo diploma, em que pese cause sofrimento, não caracteriza, por si só, ato ilícito indenizável.
Isso porque o direito de romper uma relação amorosa e conjugal e realizar outras relações sexuais e/ou amorosas, também representa o exercício de um direito da personalidade, guiado pela liberdade e pela autodeterminação, de modo que a indenização somente pode ser admitida se fundamentada no direito comum de tutela da personalidade, quando se verificar uma ofensa à dignidade do outro parceiro, e não simplesmente o exercício do direito de pôr fim à relação ou o descumprimento dos deveres do casamento.
Isto posto, em razão do instituto do dano moral estar ligado diretamente à proteção da dignidade da pessoa humana, não se pode afastálo definitivamente. Nesse sentido é que as circunstâncias agravantes são consideradas para o deferimento da indenização por dano moral.
À luz da jurisprudência pátria, destaca- se o precedente transcrito a seguir, cuja discussão alcançou a alçada do Superior Tribunal de Justiça, o qual, reconhecendo a pertinência do dano moral no caso, manteve a o montante arbitrado pelo Tribunal de origem no montante de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), vejamos:
PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO. RAZÕES QUE NÃO ENFRENTAM O FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA. AÇÃO DE DIVÓRCIO E INDENIZATÓRIA. INFIDELIDADE COMPROVADA. HUMILHAÇÕES E CONSTRANGIMENTOS PÚBLICOS. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR. R$ 30.000,00. ALTERAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. Observo que os argumentos desenvolvidos pelo agravante não infirmam a conclusão da decisão impugnada, razão pela qual o presente recurso não merece prosperar. Como salientado, o Tribunal de origem, ao analisar o conjunto fático-probatório, consignou expressamente que, em decorrência da ampla dispersão dos relatos de infidelidade do agravante, inclusive com práticas sexuais no estabelecimento comercial da família da autora, essa “sofrera humilhações e constrangimentos em seu círculo íntimo, danos morais que realmente devem ser indenizados”, apenas reduzindo o valor da condenação ao pagamento de danos morais para a quantia de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), conforme se depreende da leitura do seguinte trecho (fls. 135/136 e-STJ): (...) Observo, todavia, que a quantia arbitrada pelo Tribunal estadual se mostra dentro dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade, não se mostrando desproporcional à lesão, de modo a ensejar sua alteração em grau de recurso especial. (AgInt no AREsp 1673702/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 14/09/2020, DJe 18/09/2020)
Em sequência, o precedente abaixo demonstra o posicionamento da Corte Superior acerca do descumprimento dos deveres conjugais não serem, por si só, causa de indenização por dano moral:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ABANDONO DE MENOR. DANOS MORAIS. MATÉRIA QUE DEMANDA REEXAME DE FATOS E PROVAS. SUMULA 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. (...) 2. O STJ possui firme o entendimento no sentido de que "O dever de cuidado compreende o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. Não há dever jurídico de cuidar afetuosamente, de modo que o abandono afetivo, se cumpridos os deveres de sustento, guarda e educação da prole, ou de prover as necessidades de filhos maiores e pais, em situação de vulnerabilidade, não configura dano moral indenizável." (REsp 1579021/RS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 19/10/2017, DJe 29/11/2017). 3. O Tribunal de origem, amparado no acervo fático - probatório dos autos concluiu que: " Não houve comprovação de abandono afetivo ou material dos pais em relação à filha, de modo a configurar um ilícito ensejador de dano moral.". Dessa forma, alterar o entendimento do acórdão recorrido sobre a não comprovação dos requisitos caracterizados da responsabilidade civil demandaria, necessariamente, reexame de fatos e provas, o que é vedado em razão do óbice da Súmula 7 do STJ. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 1286242/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 15/10/2019)
Denota- se dos julgados transcritos que o reconhecimento da prática de um ato ilícito, supedâneo do dano moral indenizável, não decorre simplesmente do descumprimento dos deveres dos cônjuges e companheiros, ou pela falta ou fim do amor e, até mesmo, pela eventual traição.
Assim, conjugando os estudos sobre a conceituação do dano moral e os julgados do Superior Tribunal de Justiça, pode- se concluir que o dano moral pleiteado em decorrência do divórcio é avaliado sob a corrente subjetiva pelos Tribunais, sendo necessário realizar uma ponderação entre o exercício regular de um direito de personalidade e a perturbação e abalo emocional causados pelo seu exercício.
Portanto, ainda que se possa imputar a um dos cônjuges e companheiros, dentro de uma perspectiva social, a culpa pelo fim de um relacionamento e pelo divórcio, para que se alcance a responsabilidade civil pelo dano moral sofrido e a sua indenização correspondente, admitindo- se que o Estado entre no âmbito íntimo da relação privada, necessário demonstrar circunstâncias que extrapolem a vida íntima do casal e a liberdade e autodeterminação individual, a ponto de ser possível reconhecer uma conduta ilícita de um dos cônjuges, capaz, de fato, de causar um dano aos direitos de personalidade do outro.