A OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E A PROTEÇÃO OFERECIDA PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
A obsolescência programada é um mecanismo intencional, consistente na produção de itens de consumo cujo tempo de vida útil já está pré-estabelecido pelo fabricante, forçando o consumidor a comprar novos produtos, mesmo que os que já possuam estejam em condições de funcionamento.
As técnicas utilizadas são as mais diversas, como a indisponibilidade de peças essenciais ao funcionamento dos produtos, as quais saem de linha após determinado período, ou a baixa durabilidade combinada com o alto valor de reparo, forçando o consumidor a adquirir um aparelho novo a reparar o antigo.
Tais práticas são alvo de reclamações dos usuários em diversos países, principalmente quando se trata de aparelhos eletrônicos como celulares, notebooks e afins, tendo um histórico relevante nos Estados Unidos e em países da Europa, com reiteradas vitórias dos consumidores.
Em novembro de 2020, nos Estados Unidos, a empresa Apple pagou 113 milhões de dólares após ser acusada de programar a desaceleração intencional dos aparelhos mais antigos.i
Na Europa, a empresa está sendo novamente alvo de uma ação coletiva promovida pela associação de consumidores italiana, objetivando a indenização dos afetados pela alegada obsolescência programada caracterizada pela atualização do sistema IOS que limitava o desempenho dos Iphones pré-existentes.ii
Já no Brasil, o judiciário, por meio do REsp 984.106iii, julgado em 2012, em que o Superior Tribunal de Justiça desproveu o recurso de uma fabricante de tratores, trouxe uma relevante observação do relator Ministro Luis Felipe Salomão ao ordenamento jurídico, hoje refletido na interpretação do Código de Defesa do Consumidor, a fim de proteger os usuários de determinadas práticas abusivas eventualmente decorrentes da obsolescência programada.
No referido julgado, o ministro defendeu, entre outras observações, que o CDC deveria ser alterado para constar expressamente a abusividade da obsolescência programada, bem como que a responsabilidade do fornecedor de bens duráveis deve observar a vida útil do produto e não o da garantia contratual. Nesse sentido, afirmouiv:
“DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO E RECONVENÇÃO. JULGAMENTO REALIZADO POR UMA ÚNICA SENTENÇA. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO CONHECIDO EM PARTE. EXIGÊNCIA DE DUPLO PREPARO. LEGISLAÇÃO LOCAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280/STF. AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA PELO FORNECEDOR. VÍCIO DO PRODUTO. MANIFESTAÇÃO FORA DO PRAZO DE GARANTIA. VÍCIO OCULTO RELATIVO À FABRICAÇÃO. CONSTATAÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. EXEGESE DO ART. 26, § 3º, DO CDC. (...) 8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem. 9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo. 10. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido. (REsp 984.106/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/10/2012, DJe 20/11/2012)”
Atualmente, o STJ continua guardando a orientação do precedente citado com base no CDC, reconhecendo a obsolescência programada como comportamento abusivo, devendo o fornecedor ser responsabilizado pelo reparo e eventual indenização pelos danos causados. Senão vejamos o julgado de agosto de 2020, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronhav:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.698.267 - RJ (2020/0103952-7) DECISÃO Trata-se de agravo apresentado por ADVANCED BIONICS INSTRUMENTOS AUDITIVOS DO BRASIL LTDA contra a decisão que não admitiu seu recurso especial. O apelo nobre, fundamentado no artigo 105, inciso III, alínea "a", da CF/88, visa reformar acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Decido. (...) Quanto à segunda controvérsia, o acórdão recorrido assim decidiu: Por sua vez, o art. 18, § 1°, do CDC permite ao consumidor "a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso", em face da responsabilidade solidária de fornecedores de produtos duráveis e não duráveis pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo ou que lhes diminuam o valor. Desta forma, tornando-se incontroverso nos autos que o aparelho auditivo utilizado pelo apelado não mais é fabricado, estando para comércio apenas peças pontuais para substituição, faz jus a parte à substituição do produto por outro de mesma espécie, dada a sua defasagem e dificuldade de reposição de peças, como previsto no dispositivo legal supra referido e como bem determinado na sentença (fl. 260). Ante o exposto, com base no art. 21-E, V, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial. Nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil, majoro os honorários de advogado em desfavor da parte recorrente em 15% sobre o valor já arbitrado nas instâncias de origem, observados, se aplicáveis, os limites percentuais previstos nos §§ 2º e 3º do referido dispositivo legal, bem como eventual concessão de justiça gratuita. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 03 de agosto de 2020. MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA Presidente (Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 06/08/2020)
Diante disso, mesmo que o CDC não preveja expressamente a prática da obsolescência programada, certo é que o ordenamento jurídico oferece arcabouço capaz de subsidiar a defesa dos interesses dos usuários que se sentirem lesados. Isso porque quaisquer práticas que visem unicamente a imposição do ato de consumo, podem ser consideradas abusivas, violando a boa-fé na relação consumerista.
Por exemplo, com base no art. 4º, I e III, art. 32, caput e parágrafo único do CDC, podem ser considerados vícios de qualidade decorrentes de uma prática abusiva a redução intencional da durabilidade de um produto, bem como a indisponibilidade de peças de reposição em período inferior ao da vida útil do mesmo, ou, ainda, atualização de novos produtos e sistemas que acarretem a inutilização das versões anteriores, visando exclusivamente o consumo de novos aparelhos.
Por fim, importante ressaltar que a obsolescência programada será legítima quando não configurar a imposição do ato de consumo, visto que o CDC impõe a compatibilização e harmonia entre os interesses dos participantes da relação de consumo. Nesse sentido, o art. 12, §2º do diploma legal mencionado, elenca hipóteses em que o produto não será considerado viciado ou defeituoso, dentre as quais quando for disponibilizado no mercado outro de melhor qualidade.
Ou seja, a partir da perspectiva do STJ em consonância com as regras do CDC, a obsolescência será legítima quando respeitadas as normas sobre oferta, durabilidade e reposição de peças, baseada na vida útil que razoavelmente se espera, e desde que a inclusão de novos produtos no mercado não prejudique a utilização dos já adquiridos pelos consumidores. Deste modo a iniciativa de compra de um bem não deve ser uma imposição implícita do fornecedor e sim uma livre escolha do consumidor.