A APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA PARA MULHERES TRANS E TRAVESTIS
No dia 05/04/2022, a 6ª Turma do STJ estendeu a aplicabilidade da Lei Maria da Penha para a proteção de mulheres trans e travestis. A decisão ocorreu após uma mulher trans alegar ter sofrido agressões físicas pelo seu pai, violência essa que foi confirmada pelas autoridades responsáveis pelo caso. Inicialmente, os desembargadores da 10ª Câmara Criminal do TJ-SP não entenderam que tal ocorrência teria aplicação da lei supramencionada, pois levaram em consideração uma interpretação que comporta apenas aspectos biológicos para definir uma pessoa como pertencente ao gênero feminino. Contudo, o Ministério Público Federal afirmou que a vítima também tem direito às medidas protetivas presentes na Lei Maria da Penha, pois seu regulamento deve ser aplicado a mulheres, independentemente de serem CIS ou TRANS. O entendimento foi de que esta lei faz menção à violência baseada no gênero, e não em fatores biológicos somente. Logo, o MPF-SP alegou que o caso apenas faz referência à aplicação das normas vigentes conforme consta em seu texto.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. (Lei nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006) [grifos da autora]
A Lei nº 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada no dia 7 de agosto de 2006, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sendo dividida em 46 artigos estabelecidos como ferramentas ao combate e prevenção a casos de agressão doméstica e familiar contra a mulher. Tal lei foi um marco histórico no enfrentamento à violência de gênero, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, haja visto que ela é reconhecida pela ONU como uma das leis mais avançadas que existem contra a violência doméstica.
A lei supracitada estabeleceu diversas medidas protetivas às mulheres vítimas de agressões familiares, e foi crucial para a criação dos Juizados Especializados de Violência Doméstica contra a Mulher. No entanto, é válido destacar que, apesar do STJ ter se posicionado sobre o ocorrido esse ano, um outro órgão público já havia recomendado anteriormente a viabilidade da aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans e travestis.
Segundo o Enunciado 46 do FONAVID (Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar), “A Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5º, da Lei 11.340/2006.” Ou seja, desde 2017, com a publicação deste enunciado, tal lei deveria ter sido estendida para o auxílio ao combate à violência de todas as mulheres, e não somente as cisgêneros, como estava acontecendo.
Portanto, mesmo com a possibilidade de adoção desta lei para ocorrências de violência doméstica contra mulheres trans já ter sido garantida juridicamente, o STJ precisou intervir em tal caso, pois os juízes não estavam respeitando e aplicando o enunciado mencionado anteriormente. Sendo assim, a decisão do STJ foi um marco deveras importante, pois tal posicionamento ratificou a legalidade do Enunciado 46, além de sinalizar mais uma vez a urgência no combate à violência de gênero. Logo, o posicionamento do STJ motivou a utilização da Lei Maria da Penha como apoio à todas as mulheres que sofrem algum tipo de violência doméstica, visto que ainda havia uma forte insistência na não aplicação desta lei e suas medidas protetivas às mulheres travestis e trans.
Em seu discurso, o relator ministro Rogerio Schietti Cruz, ainda relembrou que o Brasil é responsável por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo, sendo conhecido como o país que mais mata LGBTQIAP+, e que, deste modo, há uma urgência em desconstruirmos o cenário da heteronormatividade, garantindo que todas as pessoas sejam tratadas de maneira igualitária.
Além disso, a subprocuradora-geral da República, Raquel Dodge, acrescentou que a análise da Lei Maria da Penha mostra que tal regulamento foi concebido para amparar pessoas agredidas em espaço doméstico em razão do gênero. Por conseguinte, não há motivos para excluir mulheres trans e travestis desse direito, dado que elas também estão em situação de vulnerabilidade, e sofrem violência por causa da desigualdade de gênero existente no país. Sendo assim, a decisão do STJ foi um marco de exacerbada relevância para o movimento LGBTQIAP+, sobretudo, para o movimento Trans, pois diz respeito à:
“(...) conferir a proteção especial da Lei Maria da Penha a pessoas que se enxergam, se comportam e vivem como mulheres, e que, da mesma forma que as que nascem com o sexo feminino, sofrem violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral por parte de parentes, companheiros ou conviventes”. (JORGE VIANA, EXSENADOR)
Por fim, o entendimento de Schietti perante o caso é de que "O verdadeiro objetivo da Lei Maria da Penha seria punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo". Desta maneira, não há motivos que anulem a aplicabilidade desta lei para o combate à violência doméstica contra mulheres trans e travestis, e, portanto, tal norma precisa ser respeitada por todas as instâncias.
REFERÊNCIAS:
- https://www.amb.com.br/fonavid/conclusoesfonavid.php
- https://www.institutomariadapenha.org.br/lei-11340/resumo-da-lei-maria-dapenha.html
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
- https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/superior-tribunal-de-justica-decide-quelei-maria-da-penha-e-aplicavel-a-mulher-trans/
- https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/05042022- Lei-Maria-da-Penha-e-aplicavel-a-violencia-contra-mulher-trans--decide-SextaTurma.aspx
- https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/04/05/em-decisao-inedita-stj-validaaplicacao-da-lei-maria-da-penha-para-mulheres-trans.ghtml
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