A ARTE DE INTERPOR UM RECURSO ESPECIAL
Não é segredo para nenhum jurista que interpor um recurso especial ou extraordinário assemelha-se a equilibrar um castelo de cartas. É questão de arte, em altíssimo grau. Esquecer um requisito, não ser preciso no uso dos conceitos, e todas as cartas podem vir ao chão. Nas linhas que se seguem, veremos alguns cuidados que devem ser tomados antes da interposição desse importante recurso.
Pela dicção do inciso III, do art. 105, da Constituição Federal, o recurso especial pode ser interposto contra acórdão de tribunal (não cabe recurso especial contra decisão de turma recursal) em três hipóteses (também chamadas de “permissivos constitucionais): (a) se a decisão contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; (b) se a decisão julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; ou (c) se a decisão der à lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal (dissídio jurisprudencial).
É imperativo que a matéria controvertida tenha sido objeto de discussão anterior nas instâncias ordinária, requisito que chamamos de “prequestionamento”, sob pena de não conhecimento do salvatério.
O recurso especial é interposto perante o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido (tribunal a quo), em petição contendo a exposição do fato e do direito, a demonstração do cabimento do recurso interposto (deve-se indicar entre outros requisitos a tempestividade do recurso, o regular recolhimento do preparo recursal, o permissivo constitucional autorizador, e a ocorrência de prequestionamento dos dispositivos legais alegadamente violados pelo acórdão recorrido), e as razões do pedido de reforma ou de invalidação da decisão recorrida (CPC, art. 1.029, caput e incisos).
Se fundado o recurso na hipótese de dissídio jurisprudencial (alínea “c” do permissivo constitucional), deverá o recorrente fazer “prova da divergência com a certidão, cópia ou citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que houver sido publicado o acórdão divergente, ou ainda com a reprodução de julgado disponível na rede mundial de computadores, com indicação da respectiva fonte, devendo-se, em qualquer caso, mencionar as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados” (CPC, art. 1.029, § 1º).
O recurso, em regra, não terá efeito suspensivo (CPC), mas pode receber esse efeito tanto no primeiro juízo de admissibilidade, quanto quando já na instância extraordinária, por decisão do Ministro Relator neste último caso (CPC, art. 1.029, § 5º e incisos).
Após a interposição, a parte recorrida é intimada a apresentar contrarrazões no prazo de quinze dias úteis (CPC, art. 1.030, caput). Na sequência, o presidente ou vice-presidente do tribunal a quo realizará o primeiro juízo de admissibilidade do salvatério extraordinário, podendo tanto admitir quanto negar o prosseguimento do recurso, mas sem vincular de qualquer modo as instâncias superiores.
Negado seguimento ao recurso, quando interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Superior Tribunal de Justiça exarado no regime de julgamento de recursos repetitivos, pode o recorrente agravar internamente (CPC, art. 1.030, inciso I, “b”, e § 2º), bem assim no caso de sobrestamento (CPC, art. 1.030, inciso III e § 2º); nos demais casos, a inadmissibilidade do recurso especial autorizará a interposição de agravo ao Superior Tribunal de Justiça (CPC, arts. 1.030, inciso V e § 1º c/c 1.042).
Admitido o recurso ou agravada a decisão denegatória de seguimento, o feito “subirá” para o âmbito da Corte Superior que realizará o segundo juízo de admissibilidade, bem assim julgará ou não o mérito recursal.
Até aqui, tratamos apenas da dinâmica. Em geral, ela ocorre sem maiores problemas. A maior dificuldade dos juristas com o recurso especial deriva da chamada “jurisprudência defensiva”, isto é, a tendência da Corte Superior de procurar quaisquer razões formais para não conhecer do recurso.
Deste modo, por exemplo, a interposição do recurso especial sem indicação expressa do permissivo constitucional (alguma das alíneas do inciso III do art. 105 da CF/88) implica em óbice ao conhecimento do recurso, saliente-se:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INOVAÇÃO RECURSAL. VEDAÇÃO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE NEGA PROVIMENTO, COM APLICAÇÃO DE MULTA. (...) 2. O recorrente não fundamentou corretamente seu recurso especial, pois não indicou o dispositivo constitucional no qual se funda o recurso, o que impede identificar se pretende a análise de violação de dispositivo de lei federal ou análise de divergência jurisprudencial. Incidência da Súmula 284/STF. (...) (STJ, 4ª Turma, AgRg no AREsp 430.435, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, Julg. 17.12.2013, DJe 03.02.2014) (grifo nosso)
Se houver feriado local, é necessário comprová-lo expressamente, sob pena de não contar o ponto facultativo da data para contagem da tempestividade do recurso, veja-se:
PROCESSUAL CIVIL. SEGUNDOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INTEMPESTIVIDADE DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE FERIADO LOCAL. AUSÊNCIA DE VÍCIO PREVISTO NO ART. 1.022 DO CPC/2015. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DA SOCIEDADE REJEITADOS. (...) a jurisprudência desta Corte Superior está consolidada no sentido de que a ocorrência de feriado local, recesso, paralisação ou interrupção do expediente forense deve ser demonstrada no ato da interposição do recurso que pretende seja conhecido por este Tribunal, por documento oficial ou certidão expedida pelo Tribunal de origem, não bastando mera menção a feriado local nas razões recursais. (...) (STJ, 1ª Turma, EDcl nos EDcl no AgInt no AREsp 1273321, Rel. Des. Conv. MANOEL ERHARDT, Julg. 21.02.2022, DJe 24.02.2022) (grifo nosso)
Em geral, quando interposto o recurso, é essencial indicar os dispositivos federais violados pelo acórdão recorrido, sob pena de não conhecimento do recurso por óbice na súmula nº. 284 do STF, in verbis: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia.”. E não basta citar apenas o caput do artigo, é necessário indicar também o inciso, e até a alínea se for o caso, ressalte-se:
(...) VI. No tocante à alegação genérica de violação à Lei Complementar 63/90, o Recurso Especial é inadmissível, por incidência analógica do óbice da Súmula 284 do STF, de vez que o Estado recorrente, apesar de transcrever o art. 3º, I e II, §§ 1º, 2º, 3º, 4º e 5º, da citada Lei Complementar, deixou de demonstrar como os comandos normativos contidos nesses incisos e parágrafos teriam o condão de infirmar as conclusões do acórdão recorrido. Nos termos da jurisprudência do STJ, "o recurso especial não é um menu onde a parte recorrente coloca à disposição do julgador diversos dispositivos legais para que esse escolha, a seu juízo, qual deles tenha sofrido violação. Compete à parte recorrente indicar de forma clara e precisa qual o dispositivo legal (artigo, parágrafo, inciso, alínea) que entende ter sofrido violação, sob pena de, não o fazendo, ver negado seguimento ao seu apelo extremo em virtude da incidência, por analogia, da Súmula 284/STF" (...) (STJ, 2ª Turma, AgInt no AREsp 1021814, Rel. Min. ASSUSETE MAGALHÃES, Julg. 11.10.2021, DJe 18.10.2021) (grifo nosso)
Isso porque o recurso especial deve sempre impugnar especificamente o acórdão recorrido (STJ, 4ª Turma, AgRg no AREsp 50.542/SP, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, Julg. 30.05.2019, DJE 04.06.2019), e porque não pode inovar na esfera extraordinária, seja para evitar a supressão de instância, seja porque é necessário demonstrar o prequestionamento do dispositivo federal invocado, como supramencionado.
Neste ponto, importante ressaltar que, em alguns casos, o STJ perdoa a ausência de citação numérica, no acórdão recorrido, dos dispositivos alegadamente violados (STJ, 3ª Turma, AgInt no AREsp 942895, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Julg. 20.03.2018, DJe 23.03.2018), no que é conhecido como “prequestionamento implícito”. Todavia, por via das dúvidas, é melhor opor embargos de declaração contra o acórdão e intentar prequestionar expressamente os dispositivos (CPC, art. 1.025).
Só não se esqueça do seguinte: caso os embargos sejam desprovidos, é necessário também indicar expressamente como dispositivo legal violado o inciso do art. 1.022 que tenha fundamentado o embargo, sob pena de não conhecimento do recurso. Aliás, se alegada deficiência de fundamentação no acórdão recorrido é necessário que se aponte a violação tanto ao art. 489, § 1º, do CPC, quanto ao art. 1.022, inciso II (STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1805623, Rel. Min. REGINA HELENA COSTA, Julg. 17.06.2019, DJe 26.06.2019).
Como o recurso especial visa discutir eventual violação à legislação federal em regra (viabilizando o controle de legalidade pelo Superior Tribunal de Justiça), não é cabível tal espécime recursal para revisão de cláusula contratual (súmula 5 do STJ), reexame de direito local (súmula nº. 280 do STF), por exemplo, discutir interpretação ou violação de norma estadual ou municipal, nem para debater questão constitucional (STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp 1923259, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, Julg. 21.02.2022, DJe 24.02.2022), competência esta reservada ao Supremo Tribunal Federal na sistemática extraordinária da justiça comum (CF/88, art. 102, caput e inciso III).
Suscitado o dissídio jurisprudencial, como visto, é necessário dar prova de sua existência. Isso significa que não vale citar só a ementa do acórdão paradigma (aquele que é tomado como exemplo em comparação com o acórdão recorrido), sendo necessário realizar o adequado “cotejo analítico”, isto é, explicitar a similitude das razões de fato entre as decisões recorrida e paradigma, bem assim indicar em ambas o dispositivo legal violado (se divergente a base fática, ou caso o acórdão paradigma tenha proferido decisão com base em dispositivo legal diverso, não será possível instaurar o dissídio, visto que a ratio decidendi, em cada caso, não será a mesma).
Ademais, embora os tribunais sejam compostos de órgãos fracionários que possam ter entendimentos divergentes entre si, o dissídio só pode ser suscitado por controvérsia entre tribunais distintos (súmula 13 do STJ), e não vale indicar como paradigma enunciado de súmula (STJ, 2ª Turma, REsp 881672, Rel. Min. ELIANA CALMON, Julg. 24.06.2008, DJe 13.08.2008).
Não cabe recurso especial, em regra, contra acórdão que concede ou revoga tutela provisória, considerando que a natureza dessas decisões é de mera cognição não exauriente, ou seja, juízo precário sobre a situação de fato e de direito discutido nos autos do processo, possivelmente mutável até o fim da demanda.
Todavia, a regra comporta algumas exceções, como por exemplo se o dispositivo federal violado for a própria norma autorizadora da concessão de tutela de urgência, destaque-se:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. DEFERIMENTO DE TUTELA DE URGÊNCIA. RECURSO ESPECIAL. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA Nº 735 DO STF. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7 DO STJ. ART. 300 DO NCPC. NÃO INDICAÇÃO DE OFENSA. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. (...) 2. É inviável o recurso especial para reexaminar decisão que defere ou indefere liminar ou antecipação de tutela, a teor do disposto na Súmula nº 735 do STF. (...) 5. O recurso especial que versa sobre a concessão ou indeferimento da tutela de urgência apenas poderia versar sobre os requisitos da referida espécie de tutela provisória, previstos no art. 300 do NCPC, dispositivo legal que não foi indicado como violado nas razões do recurso especial. (...) (STJ, 3ª Turma, AgInt no REsp 1941275, Rel. Min. MOURA RIBEIRO, Julg. 21.02.2022, DJe 23.02.2022) (grifo nosso)
Por fim, a “pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”, como reza a tão conhecida súmula nº. 7 do STJ, embora seja possível abroquelar o salvatério quando a intensão é de tão somente revalorar provas deduzidas no curso processo, saliente-se:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. RECURSO ESPECIAL. CASO CONCRETO. REVALORAÇÃO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. AFASTAMENTO DA SÚMULA 7/STJ. (...) 3. Conforme a jurisprudência desta Corte, revela-se possível, nos domínios do recurso especial, promover a revaloração jurídica de contexto fático tido por incontroverso nas instâncias ordinárias. (...) (STJ, 1ª Turma, REsp 1818107, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, Julg. 07.12.2021, DJe 09.02.2022) (grifo nosso)
Como se vê, são vários cuidados que devem ser tomados quando interposto recurso especial, sobretudo considerando a duríssima jurisprudência defensiva do Superior Tribunal de Justiça, mas se feito com cuidado e atenção, não há vento que possa derrubar o castelo de cartas.