A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DE II E IPI CONFERIDA ÀS ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS
Recentemente o Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário nº. 630.790 (Plenário, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Julg. 21.03.2022, DJe 29.03.2022), reconheceu, em sede de repercussão geral, que as “entidades religiosas podem se caracterizar como instituições de assistência social a fim de se beneficiarem da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, da Constituição, que abrangerá não só os impostos sobre o seu patrimônio, renda e serviços, mas também os impostos sobre a importação de bens a serem utilizados na consecução de seus objetivos estatutários”.
O v. acórdão se encontra assim ementado:
Direito tributário. Recurso extraordinário com repercussão geral. Impostos sobre a importação. Imunidade tributária. Entidades religiosas que prestam assistência social.
1. Recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida a fim de definir (i) se a filantropia exercida à luz de preceitos religiosos desnatura a natureza assistencial da entidade, para fins de fruição da imunidade prevista no art. 150, VI, c, da Constituição; e (ii) se a imunidade abrange o II e o IPI incidentes sobre as importações de bens destinados às finalidades essenciais das entidades de assistência social.
2. A assistência social na Constituição de 1988. O art. 203 estabelece que a assistência social será prestada “a quem dela necessitar”. Trata-se, portanto, de atividade estatal de cunho universal. Nesse âmbito, entidades privadas se aliam ao Poder Público para atingir a maior quantidade possível de beneficiários. Porém, a universalidade esperada das instituições privadas de assistência social não é a mesma que se exige do Estado. Basta que dirijam as suas ações indistintamente à coletividade por elas alcançada, em especial às pessoas em situação de vulnerabilidade ou risco social, sem viés discriminatório.
3. Entidades religiosas e assistência social. Diversas organizações religiosas oferecem assistência a um público verdadeiramente carente, que, muitas vezes, instalase em localidades remotas, esquecidas pelo Poder Público e não alcançadas por outras entidades privadas. Assim sendo, desde que não haja discriminação entre os assistidos ou coação para que passem a aderir aos preceitos religiosos em troca de terem suas necessidades atendidas, essas instituições se enquadram no art. 203 da Constituição.
4. O alcance da imunidade das entidades assistenciais sem fins lucrativos. A imunidade das entidades listadas no art. 150, VI, c, da CF/1988, abrange não só os impostos diretamente incidentes sobre patrimônio, renda e serviços, mas também aqueles incidentes sobre a importação de bens a serem utilizados para a consecução dos seus objetivos estatutários. Além disso, protege a renda e o patrimônio não necessariamente afetos às ações assistenciais, desde que os valores oriundos da sua exploração sejam revertidos para as suas atividades essenciais. Precedentes desta Corte.
5. Recurso extraordinário conhecido e provido, a fim de reformar o acórdão recorrido e reconhecer a imunidade tributária da recorrente quanto ao II e ao IPI sobre as operações de importação tratadas nos presentes autos. 6. Proponho a fixação da seguinte tese de repercussão geral: “As entidades religiosas podem se caracterizar como instituições de assistência social a fim de se beneficiarem da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, da Constituição, que abrangerá não só os impostos sobre o seu patrimônio, renda e serviços, mas também os impostos sobre a importação de bens a serem utilizados na consecução de seus objetivos estatutários.”
No caso concreto, a Associação Torre de Vigia de Bíblia e Tratados – associação civil privada religiosa, sem fins lucrativos, constituída para divulgação da fé religiosa, bem como para desenvolvimento de programas de educação, formação humana e assistência social - interpôs recurso extraordinário em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que entendeu que as organizações religiosas não se configurariam propriamente como entidades de assistência social, vez que ausentes os requisitos da generalidade e da universalidade da prestação assistencial, a inviabilizar o reconhecimento da imunidade requestada.
Pretendia a Recorrente que a imunidade tributária de que trata o art. 150, inciso VI, alínea “c”, e § 4º, da Constituição Federal, fosse estendida ao imposto de importação (II) e ao imposto sobre produtos industrializados (IPI), incidentes sobre a importação de papel especial para impressão de Bíblias, limpador de banda de papel, entre outros bens relacionados ao cumprimento das finalidades essenciais à associação religiosa.
Para o Ministro Luis Roberto Barroso, a “assistência social engloba um conjunto de ações do Poder Público e da sociedade destinadas a garantir a existência digna de indivíduos que, por seus próprios meios, não conseguem alcançá-la”. Neste sentido, a assistência social deve ser perseguida pelo Estado, mas também o pode ser pelos particulares, em colaboração com a Administração Pública em geral.
A diferença, é que embora o Estado deva prever uma assistência universal, os particulares, por suas próprias limitações materiais e organizacionais, podem se especializar em atendimentos regionalizados. De fato, a “universalidade esperada das entidades privadas é no sentido de que devam dirigir as suas ações assistenciais indistintamente à coletividade por elas alcançada, especialmente às pessoas em situação de vulnerabilidade ou risco social, sem viés discriminatório”.
A assistência social deve ser interpretada sempre de maneira ampla, abrangendo uma série de atividades, desde os cuidados mais básicos (como alimentação e higiene), até os mais complexos (como o ensino profissionalizante).
Nesta toada, considerando que as “organizações assistenciais religiosas desempenham um papel extremamente relevante, não sendo raras as que possuem um componente social que, para além de colaborar com o Estado, muitas vezes substituem a ação estatal na assistência aos necessitados”, o Ministro Relator reconheceu que, desde que não haja discriminação para com os assistidos (o que ocorreria, por exemplo, se a assistência fosse prestada apenas aos membros da religião ou se fosse demandada alguma espécie de conversão para que fosse realizada a prestação social), as organizações religiosas devem ser vistas como associações de assistência social, sendo imunes, por conseguinte, a toda sorte de tributos que interfiram com a consecução de suas finalidades essenciais, consoante art. 150, inciso VI, alínea “c”, e § 4º, da Constituição Federal, veja-se:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(...) VI - instituir impostos sobre:
(...) c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei;
(...) § 4º - As vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.
Para o Ministro Relator, esse “entendimento se encontra abarcado tanto pela concretização do fundamento republicano da dignidade da pessoa humana, ao assegurar-se o mínimo existencial a tais indivíduos, quanto pela proteção à liberdade de religião e de crença, direito garantido pelo art. 5º, VI e VII, da Constituição”.
Embora o texto constitucional possa levar a uma interpretação restritiva sobre quais impostos estariam abrangidos pela imunidade, o Pretório Excelso há muito vem ampliando o alcance, de modo a afastar a cobrança de todos os impostos que possam reduzir o patrimônio ou comprometer a renda das instituições assistenciais. No tocante especificamente ao imposto de importação, inclusive, o entendimento do Supremo Tribunal Federal de que seria atingido pela imunidade do art. 150, inciso VI, alínea “c”, remonta até mesmo à Corte pré-1988.
Neste sentido, ressaltou o Ministro Relator que a Suprema Corte vem “conferindo amplitude à norma constitucional imunizante, de modo a abranger todos os impostos que de alguma forma possam desfalcar o patrimônio, prejudicar as atividades ou reduzir as rendas da entidade imune, ainda que estejam apenas indiretamente relacionados com as suas finalidades essenciais”.
A única condição, por óbvio, é que os recursos obtidos sejam vertidos ao implemento de tais fins. Inclusive, mesmo que em obiter dictum, o Douto Ministro Relator fez questão de ponderar a imprescindibilidade da vigilância das autoridades fiscais na verificação das circunstâncias fáticas e jurídicas relacionadas à concessão da imunidade, sobretudo para “identificar se o patrimônio, a renda e os serviços da entidade imune estão afetados a suas finalidades essenciais”.
Outrossim, ficou implícito que não é qualquer organização religiosa que pode requerer o reconhecimento como “entidade de assistência social”, sendo necessária a apresentação de comprovação idônea. No caso concreto, a instituição religiosa recorrente comprovou seu status assistencial mediante certificados, declarações de utilidade pública, bem assim pelo seu estatuo social.