COMPREI UM IMÓVEL DE UMA INCORPORADORA E DESCOBRI QUE TEM UMA CLÁUSULA DE HIPOTECA NA MATRÍCULA, O QUE FAZER?
A pergunta parece específica, mas o problema por ela versado acomete a mais brasileiros do que pode parecer a uma primeira vista. Quando incorporadoras constroem imóveis para venda a terceiros, frequentemente coletam recursos de instituições financeiras e oferecem o próprio bem imóvel como garantia da dívida (hipoteca real). Ato contínuo, quando o terceiro adquirente compra a coisa, no instrumento compromissório da compra e venda é comum constar uma singela cláusula de que a incorporadora em tantos dias tomará as medidas necessárias para dar baixa à hipoteca. Todavia, e se ela nada fizer?
O caminho natural é recorrer à instituição financeira. Porém, nem sempre os bancos estão dispostos a atender o pleito do adquirente, não havendo outra saída senão o ingresso de uma ação judicial de obrigação de fazer.
É importante ressaltar que nestes casos estaremos, na maior parte das vezes, diante de uma relação de consumo, seja entre o terceiro adquirente e a incorporadora (consumidor direto), seja entre aquele e a instituição financeira (consumidor por equiparação), como inclusive vem salientando a pacífica jurisprudência de nossos tribunais pátrios, veja-se:
Agravo de Instrumento. Ação de obrigação de fazer. Baixa de gravame em registro de imóvel. Decisão que indeferiu pedido de denunciação da lide e chamamento ao processo da incorporadora. Irresignação do Banco-réu. Fundamento de que a baixa da hipoteca do bem imóvel compete exclusivamente à incorporadora. Decisão que se mantém. Embora o contrato de financiamento tenha sido firmado entre o Banco e a empresa incorporadora, sem a participação dos autores, adquirentes do imóvel, o negócio jurídico inegavelmente gera efeitos sobre os autores, que devem ser considerados consumidores por equiparação (artigo 17 do CDC). Sendo então a relação discutida nos autos de natureza consumerista, não é possível a denunciação da lide, vedada pelo art. 88 do Código de Defesa do Consumidor, sendo certo que somente cabe o chamamento ao processo quando a parte demandada chame ao processo a seguradora contratada para a cobertura de sua responsabilidade, o que não é o caso dos autos. Denunciação da lide que não serve para a transferência de responsabilidade ao terceiro denunciado. Precedentes do STJ e desta Corte. DESPROVIMENTO DO RECURSO. (TJ-RJ, 9ª Câmara Cível, AI 00687363620218190000, Rel. Desa. DANIELA BRANDÃO FERREIRA, Julg. 09.12.2021, DJE 13.12.2021)
Tal racional decorre de uma interpretação sistemática do disposto nos arts. 2º, parágrafo único, e 17, do Código de Defesa do Consumidor, destaque-se:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. (grifo nosso)
Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento. (grifo nosso)
Em todo caso, no mérito, o fundamento jurídico da pretensão é bastante simples: enunciado nº. 308 da súmula da jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça que dispõe, in verbis: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel” (destacamos).
Decerto, a hipoteca que o banco institui sobre o imóvel garante a dívida dela enquanto o bem permanecer na propriedade da devedora original, isto é, da incorporadora. Havendo transferência da propriedade, porém, o crédito da instituição financeira passa a incidir tão somente sobre “os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado” (Lei nº. 4.864/65, art. 22), mesmo porque só “aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca” (CC, art. 1.420).
Por conseguinte, o entendimento jurisprudencial é de que, à luz da boa-fé, devem ser resguardados os interesses do terceiro adquirente que cumpriu com todos os seus compromissos e não pode perder o bem que lisamente comprou e pagou em favor da instituição que, tendo financiado o projeto de construção, foi negligente na defesa do seu crédito perante a sua devedora, deixando de usar dos instrumentos próprios e adequados previstos na legislação de regência.
Como salientou o saudoso Ministro Ruy Rosado de Aguiar, então membro da Colenda 4ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº. 187.940 (Julg. 20.04.1999; DJ. 21.06.1999), o princípio da boa-fé objetiva impõe ao financiador de edificação de unidades destinadas à venda aprecatar-se para receber o seu crédito da sua devedora ou sobre os pagamentos a ela efetuados pelos terceiros adquirentes. O que se não lhe permite é assumir a cômoda posição de negligência na defesa dos seus interesses, sabendo que os imóveis estão sendo negociados e pagos por terceiros, sem tomar nenhuma medida capaz de satisfazer os seus interesses, para que tais pagamentos lhe sejam feitos e de impedir que o terceiro sofra a perda das prestações e do imóvel” (Voto do Ilmo. Sr. Min. Relator, pág. 4).
Outrossim, escreveu o Douto Ministro Relator que o fato de constar do registro a hipoteca da unidade edificada em favor do agente financiador da construtora não tem o efeito que se lhe procura atribuir, para atingir também o terceiro adquirente, pois que ninguém que tenha adquirido imóvel neste país (...) assumiu a responsabilidade de pagar a sua dívida e mais a dívida da construtora perante o seu financiador. Isso seria contra a natureza da coisa, colocando os milhares de adquirentes de imóveis, cujos projetos foram financiados pelo sistema, em situação absolutamente desfavorável, situação essa que a própria lei tratou claramente de eliminar. Além disso, consagraria abuso de direito em favor do financiador que deixa de lado os mecanismos que a lei lhe alcançou, para instituir sobre o imóvel - que possivelmente nem existia ao tempo do seu contrato, e que estava destinado a ser transferido a terceiro, - uma garantia hipotecária pela dívida da sua devedora, mas que produziria necessariamente efeitos sobre o terceiro (Voto do Min. Relator, págs. 5-6).
Vale ressalvar que em casos assim sequer é necessário que a incorporadora ou que a instituição financeira estejam ambas no polo passivo. Frente ao consumidor, o dever de dar baixa na hipoteca cabe a qualquer das duas partes, ficando ao bom alvitre do interessado escolher contra quem demandar. E depois, em sendo caso de relação de consumo, para o adquirente do imóvel corre ainda a presunção de hipossuficiência técnica e econômica, a justificar a concessão da inversão do ônus da prova em seu favor, consoante disposto no art. 6º, inciso VIII, do CDC, e no art. 373, § 1º, do CPC.