DA AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO EM POSSE
Existem vários direitos fundamentais insculpidos na Constituição, entre os quais destacam-se os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, entre outros (CF/88, art. 5º, caput). A propriedade privada como direito fundamental decorre da adoção, pela República brasileira, do modelo econômico capitalista, fenômeno essencialmente moderno.
Não obstante, o direito de propriedade em si é coisa antiga, remonta aos tempos áureos do Império Romano e foram eles que estabeleceram importantes distinções que são válidas até hoje. Assim, a propriedade é formada por três atributos: ius utendi, fruendi et abutendi, ou seja, direitos de uso, fruição e disposição. Não apenas, os romanos também há muito diferenciaram o direito de propriedade, ius possidendi, do direito de posse, o ius possessionis.
Conceitualmente, propriedade, na lição do ilustre Caio Mario, é “o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha”. 1 Ela se distingue da posse, visto que esta é tão somente uma “situação de fato, em que uma pessoa, independentemente de ser ou de não ser proprietária, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a”. 2 Na dicção do Código Civil, adquire-se “a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1.204).
Assim, é importante compreender, de pronto, que tanto a propriedade quanto a posse podem ser juridicamente defendidas. E mesmo que a propriedade conceda uma espécie de trunfo a seu proprietário, não será por isso que poderá turvar a posse justa por seu próprio alvitre. Tanto é assim, que não pode o locador adentrar sua propriedade sem autorização do locatário, visto que esse, a despeito de contratualmente vinculado àquele e mesmo sem ser proprietário, tem a posse direta sobre a coisa, oponível, portanto, em face daquele, como contra qualquer outro.
Decerto, existem várias maneiras de se defender judicialmente a posse e a propriedade, neste texto avaliaremos uma espécie relevante de ação possessória: a ação de reintegração em posse.
Reza o Código Civil, em seu art. 1.210, caput, bem assim o Código de Processo Civil, no art. 560, que o possuidor tem direito a ser restituído em sua posse, em caso de esbulho.
São, portanto, quatro requisitos para que seja possível manejar a pretensão reintegratória (CPC, art. 561, incisos): (1) demonstração de que o demandante tinha, previamente ao esbulho padecido, a posse sobre a coisa; (2) comprovação da ocorrência de esbulho possessório; (3) prova da data em que ocorreu o esbulho; (4) demonstração da perda da posse em consequência. Reflitamos sobre cada item preliminarmente.
Com relação ao primeiro, o autor da ação deve demonstrar que tinha a posse sobre a coisa esbulhada, independentemente do título. Evidentemente que se a posse, em si, decorreu também de esbulho recente, será bem difícil comprovar esse requisito, mas considere-se a hipótese do locatário comercial, cujo imóvel foi invadido por terceiros com intuito de habitação. Apesar do locatário não ser proprietário é possuidor da coisa, e à justo título, pelo que poderia mais facilmente demonstrar o atingimento do primeiro requisito.
O precedente a seguir bem ilustra este caso:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - CONTRATO DE LOCAÇÃO - IMÓVEL INVADIDO - LOCATÁRIO ESBULHADO - REQUISITOS PRESENTES - LIMINAR DEFERIDA - RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (...) 2 - Vigente o contrato de locação, não havendo qualquer indicação nos autos sobre pronunciamento judicial de extinção do negócio jurídico correspondente, sobressai o direito do locatário de defender a sua posse direta via ação de reintegração de posse. (TJMG, 11ª Câmara Cível, AI 10056140161334001, Rel. Des. WANDERLEY PAIVA, Julg. 17.12.2014, DJe 19.12.2014) (grifo nosso)
No que toca ao segundo e terceiro, cumpre salientar que “esbulho possessório” denota a existência da aquisição, violenta ou não, clandestina ou às claras (mas, injusta), da posse por terceiros. No exemplo acima, a invasão do imóvel locado caracteriza a ocorrência de esbulho.
Não se olvide que da tentativa de ocupação por outros não possuidores é possível repeli-la utilizando força média e proporcional, desde que imediata (desforço imediato), conforme art. 1.210, § 1º, do Código Civil. Ou seja, evidentemente pode o possuidor defender sua posse e impedir que outros tentem ocupa-la, em exercício regular de seu direito. O que não pode é, uma vez cessado o esbulho - no exemplo acima, invadida a coisa e lá assentando-se os invasores -, tentar por sua própria força expulsar os novos possuidores, pelo que dependerá de provimento judicial para fazer isso licitamente (via de regra é vedada a autotutela no ordenamento jurídico pátrio).
Colacione-se, neste sentido, o intrigante precedente a seguir, em que se consignou que até mesmo a própria Administração Pública deve atentar-se à imediaticidade e proporcionalidade do desforço imediato, sob pena de cometimento de ato ilícito:
APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. OCUPAÇÃO IRREGULAR DE BEM PÚBLICO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE SEM ORDEM JUDICIAL. PODER DE POLÍCIA. EXCESSO EVIDENCIADO, NO CASO. DANO MORAL CARACTERIZADO. DANO MATERIAL, CONTUDO, NÃO COMPROVADO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA PARCIALMENTE REFORMADA. (...) Da análise da prova produzida é possível concluir que houve excesso na atuação dos agentes públicos, que, na ausência de qualquer ordem judicial a amparar seu ato, e sem ter notificado previamente a autora, buscaram restituir a posse do imóvel por suas próprias forças. Hipótese em que inaplicável a exceção do § 1º do art. 1.210 do Código Civil, uma vez que o exercício da legítima defesa da posse (desforço imediato, autotutela da posse ou desforço possessório) só é possível quando o possuidor turbado ou esbulhado o faça logo ? o que não é o caso dos autos. Arbitrariedade evidenciada, com violação dos princípios da legalidade e do devido processo legal, que não resta albergada pelo exercício regular do poder de polícia. A despeito da irregularidade da ocupação, tal não exime a Municipalidade do cumprimento da legislação aplicável ao caso. Na hipótese, deveria ter se valido da via judicial, em razão do lapso temporal decorrido desde o início da ocupação. Ilicitude no agir demonstrada. (...) (TJRS, 9ª Câmara Cível, AC 70080556863, Rel. Des. EDUARDO KRAEMER, Julg. 16.10.2019, DJe 12.12.2019) (grifo nosso)
A prova da data é importante por uma série de razões, devendo-se considerar que o procedimento adotado pela ação possessória mudará a depender de quando intentada a ação. Assim, diremos se tratar de ação de força nova espoliativa (CPC, art. 558, caput), se o esbulho datar de menos de ano e dia, quando deverá seguir o rito dos arts. 560 a 566 do Código de Processo Civil, e, se ultrapassar esse limiar temporal, diremos se tratar de ação de força velha espoliativa (art. 558, parágrafo único), devendo-se seguir o procedimento comum.
No primeiro caso – ação de força nova espoliativa –, diz o Código de Processo Civil, que estando “a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração” (art. 562, caput). Caso o Juiz não esteja totalmente convencido da pretensão reintegratória, poderá exigir justificação prévia do autor que, se for suficiente, autorizará a expedição incontinenti do mandado de reintegração em posse (art. 563), salvo se tratar de ente público, cuja oitiva dos representantes é imprescindível (art. 562, parágrafo único).
No segundo – ação de força velha espoliativa-, considera o insigne Caio Mário que não é possível a reintegração liminar, in verbis:
“(...) Se o esbulho é de mais de ano (ação de força velha espoliativa) o juiz fará citar o réu para que se defenda, admitirá suas provas, que ponderará com as do autor, e decidirá finalmente quem terá a posse. Nesse caso, a sentença tem efeito dúplice: julgando que o autor não deve ser reintegrado, reconhece ipso facto a legitimidade da posse do réu; e viceversa, concedendo a reintegração, repele a pretensão do esbulhador sobre a coisa. (...)”3 .
E vai, nesta mesma linha, a jurisprudência pátria, ressalte-se:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – REINTEGRAÇÃO DE POSSE – LIMINAR – IMPOSSIBILIDADE – ESBULHO OCORRIDO HÁ MAIS DE ANO E DIA – POSSE VELHA – RECURSO DESPROVIDO. Descabe o deferimento de liminar de reintegração de posse com base no procedimento especial do Art. 924 do CPC/73 quando intentada a ação fora do prazo de ano e dia do esbulho. (TJMT, 2ª Câmara de Direito Privado, AI 10108542920188110000, Rel. Desa. MARIA HELENA GARGAGLIONE POVOAS, Julg. 12.12.2018, DJe 22.01.2019) (grifo nosso)
No que tange ao quarto requisito, por fim, deve-se demonstrar a ocorrência da perda da posse em razão de esbulho, ou seja, o nexo de causalidade.
Importante ressaltar que as ações possessórias são, em geral fungíveis, pelo que a propositura de uma, em vez de outra, “não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estavam provados” (CPC, art. 554), sendo ainda lícito que o autor da ação cumule o “pedido possessório” com outros, como a condenação em perdas e danos, a indenização de frutos, a imposição de medidas assecuratórias da posse, etc. (art. 555, incisos e parágrafo único).
De outro lado, como a ação em tela cuida de proteger a posse, e, como se viu, considerando que a posse a qualquer título pode ser protegida pelo possuidor, é possível que o próprio réu na ação possessória conteste a pretensão reintegratória defendendo a legitimidade da própria posse e até mesmo requerer indenização “pelos prejuízos resultantes na turbação ou esbulho cometido pelo autor” (CPC, art. 556).
Neste particular, pode o réu requerer que o autor preste caução real ou fidejussória, quando for este mantido ou liminarmente reintegrado na posse da coisa, se comprovado não possuir o demandante condições financeiras para, em caso de sucumbência, responder por eventuais perdas e danos (CPC, art. 559).
Bem assim, o terceiro embargante que comprovar suficientemente a legitimidade de sua posse pode, no âmbito dos embargos de terceiro, requerer até mesmo liminarmente sua reintegração (CPC, art. 678), independentemente da prestação de caução, caso economicamente hipossuficiente (art. 678, parágrafo único).
Em ação possessória nunca se discute domínio (CC, art. 1.210, § 2º), assim, não “obsta à manutenção ou à reintegração de posse a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa” (CPC, art. 557, parágrafo único). Por conseguinte, seria até mesmo possível determinar a reintegração de posse à pessoa não proprietária contra o próprio proprietário do imóvel, por exemplo, o caso do usufrutuário e possuidor direto que é expulso ilicitamente de sua posse pelo proprietário, situação em que aquele poderá demandar ser reintegrado na posse, independentemente do domínio deste.
O precedente a seguir é bem ilustrativo deste exemplo:
Posse - Ação de reintegração - Usufrutuário do imóvel - Comodato verbal - Notificação. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos, podendo, pois, dar a coisa em comodato, Ficando legitimado a romper essa relação jurídica pelo meio legal e a formular pretensão de reintegração, ainda que o comodatário ostente a condição de proprietário da área reintegranda. Preliminar de irregularidade de representação processual, suscitada em contra-razões, repelida. Ação procedente. Recurso não provido. (TJSP, 21ª Câmara de Direito Privado, AC 990103916492, Rel. Des. ITAMAR GAINO, Julg. 27.10.2010, DJe 12.11.2010) (grifo nosso)
E, nesta toada, nenhuma das partes, seja autor ou réu, mesmo que aquele seja proprietário legítimo, poderá propor “ação de reconhecimento do domínio” na pendência da possessória, salvo, evidentemente, se a pretensão for deduzida me face de terceiro (art. 557, caput).
É, portanto, importante instrumento de defesa da posse a ação de reintegração, sendo, por consequência, veículo de grande relevância à tutela dos direitos fundamentais, especialmente a dignidade da pessoa humana, visto que mesmo aquele não proprietário (a maior parte dos brasileiros) pode defender sua posse contra agressão de outrem e, com isso, assegurar a si, e aos seus, uma vida mansa, digna e pacífica, como dizem as sagradas escrituras: “cada um debaixo da sua própria videira e debaixo da sua própria figueira” (1ª Reis 4:25).