DA CONTAGEM DE PRAZOS RECURSAIS NO MICROSSISTEMA DA LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIAS
A contagem de prazos, embora pareça, não é algo tão simples. Equivocar-se na forma certa de calcular o termo inicial e final de determinado prazo pode acarretar, na pior das hipóteses, a temida “preclusão temporal”, restando obstada a dedução da pretensão em Juízo.
Neste particular, sempre foi alvo de constante inquietação a Lei nº. 11.101/2005, que inaugurou o microssistema da recuperação judicial e falência. Isso porque a legislação em comento previu diversos prazos próprios para prática de certos atos não propriamente processuais, levando a jurisprudência, especialmente após a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, a uma laboriosa tarefa de distinguir quais prazos seriam materiais (e portanto contatos em dias corridos) e quais prazos seriam processuais (e portanto contados em dias úteis).
A confusão começava a partir da simplória redação do art. 189 da lei em comento, que, anteriormente à Lei nº. 14.112/2020, dispunha: “Aplica-se a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei”.
Afinal, se o Código de Processo Civil se aplica “no que couber” aos procedimentos desta lei, a regra do Novo CPC que estabelece a contagem dos prazos em dias úteis (art. 219, caput) teria cabimento no microssistema da Lei nº. 11.101/2005?
O Egrégio Superior Tribunal de Justiça entendeu que sim, mas apenas em situações de cunho “eminentemente excepcional”, considerando duvidosa a aplicação do CPC conforme a distinção entre prazos de caráter material e processual, confira-se:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADVENTO DO CPC/2015. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. FORMA DE CONTAGEM DE PRAZOS NO MICROSSISTEMA DA LEI DE 11.101/2005. CÔMPUTO EM DIAS CORRIDOS. SISTEMÁTICA E LOGICIDADE DO REGIME ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA.
1. A aplicação do CPC/2015, no âmbito do microssistema recuperacional e falimentar, deve ter cunho eminentemente excepcional, incidindo tão somente de forma subsidiária e supletiva, desde que se constate evidente compatibilidade com a natureza e o espírito do procedimento especial, dando-se sempre prevalência às regras e aos princípios específicos da Lei de Recuperação e Falência e com vistas a atender o desígnio da norma-princípio disposta no art. 47.
2. A forma de contagem do prazo - de 180 dias de suspensão das ações executivas e de 60 dias para a apresentação do plano de recuperação judicial - em dias corridos é a que melhor preserva a unidade lógica da recuperação judicial: alcançar, de forma célere, econômica e efetiva, o regime de crise empresarial, seja pelo soerguimento econômico do devedor e alívio dos sacrifícios do credor, na recuperação, seja pela liquidação dos ativos e satisfação dos credores, na falência.
3. O microssistema recuperacional e falimentar foi pensado em espectro lógico e sistemático peculiar, com previsão de uma sucessão de atos, em que a celeridade e a efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos, que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, por conseguinte, contínuos, sob pena de vulnerar a racionalidade e a unidade do sistema.
4. A adoção da forma de contagem prevista no Novo Código de Processo Civil, em dias úteis, para o âmbito da Lei 11.101/05, com base na distinção entre prazos processuais e materiais, revelar-se-á árdua e complexa, não existindo entendimento teórico satisfatório, com critério seguro e científico para tais discriminações. Além disso, acabaria por trazer perplexidades ao regime especial, com riscos a harmonia sistêmica da LRF, notadamente quando se pensar na velocidade exigida para a prática de alguns atos e na morosidade de outros, inclusive colocando em xeque a isonomia dos seus participantes, haja vista a dualidade de tratamento.
5. Na hipótese, diante do exame sistemático dos mecanismos engendrados pela Lei de Recuperação e Falência, os prazos de 180 dias de suspensão das ações executivas em face do devedor (art. 6, § 4º) e de 60 dias para a apresentação do plano de recuperação judicial (art. 53, caput) deverão ser contados de forma contínua.
6. Agravo interno não provido. (STJ, 4ª Turma, AgInt no REsp 1774998, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, Julg. 19.09.2019, DJe 24.09.2019) (grifo nosso)
Conquanto um crítico mais arguto possa perceber que a solução dada pela Augusta Corte Superior, com o perdão da expressão, apenas trocou seis por meia dúzia – já que apenas substituiu a expressão jurídica indeterminada “no que couber” por outra igualmente indeterminada “eminentemente excepcional” -, a orientação parece ser de que os prazos previstos expressamente na Lei nº. 11.101/2005 seriam em dias corridos, mas aqueles previstos no CPC – especialmente os recursais -, o seriam em dias úteis.
A jurisprudência aparentava, assim, ter encontrado um final feliz na matéria, veja-se, neste sentido, este precedente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso:
RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECUPERAÇÃO JUDICIAL - PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DO CRÉDITO – NATUREZA PROCESSUAL – CONTAGEM EM DIAS ÚTEIS – ART. 219 E 220 AMBOS DO CPC – TEMPESTIVIDADE –– DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO.
Na hipótese em que o prazo diz respeito a incidentes processuais, a recursos ou à prestação jurisdicional, como é o caso da Impugnação ao Crédito, este será processual e seguirá o modo de contagem do Novo Código de Processo Civil, que, em seu artigo 219 do CPC/2015, prevê como sendo dias úteis. (TJMT, 1ª Câmara de Direito Privado, AI 1000257-30.2020.8.11.0000, Rel. Des. ALEXANDRE ELIAS FILHO, Julg. 17.11.2020, DJe 18.11.2020)
No entanto, o legislador também queria ter algo a dizer sobre a questão, e tentou espancar qualquer dúvida com a alteração do citado art. 189, por meio da Lei nº. 14.112/2020, passando a dispor o seguinte:
Art. 189. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o disposto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei.
§ 1º Para os fins do disposto nesta Lei: I - todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos;
e
II - as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa. § 2º Para os fins do disposto no art. 190 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), a manifestação de vontade do devedor será expressa e a dos credores será obtida por maioria, na forma prevista no art. 42 desta Lei.
A emenda saiu pior que o soneto. O barítono se atrapalhou e desafinou o contralto. Até o tenor se engasgou.
O caput do dispositivo praticamente manteve a regra genérica anterior, mas foi o § 1º que causou espécie na comunidade jurídica ao determinar que “todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos”. O que isto significa? Todos os recursos serão contados em dias corridos? Quaisquer prazos ou incidentes processuais previstos no CPC, mas não na Lei nº. 11.101/2005, deverão ser contados em dias corridos também?
A insegurança criada por esse dispositivo – que por veicular regra de caráter eminentemente processual tem aplicação imediata a todos os processos em curso (CPC, art. 14) – é enorme, ainda mais considerando que a contagem de prazo sempre foi o pesadelo até do mais experiente dos advogados.
A jurisprudência logo começou a discutir esse dispositivo e, ainda que o Egrégio Superior Tribunal de Justiça não tenha chegado a uma solução mais definitiva, a tendência dos tribunais parece ser a de que, simplesmente, nada mudou com a alteração da Lei nº. 14.112/2020, é dizer, os prazos recursais continuam sendo contados em dias úteis (especialmente o de interposição de agravo de instrumento) e os prazos expressamente previstos na Lei nº. 11.101/2005 o seriam em dias corridos.
Destaque-se, oportunamente, o entendimento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bastante esclarecedor sobre o assunto:
“(...) Rejeita-se a preliminar arguida pela agravada, eis que os prazos processuais previstos no Código de Processo Civil, como é o caso daquele aplicável à interposição de recursos, devem ser contados em dias úteis, e não em dias corridos (CPC, art. 1.003, § 5º, c.c. 219). Este é o entendimento pacífico das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial deste E. Tribunal de Justiça a respeito do tema, conforme se verifica, por exemplo, do recémcancelado Enunciado XIV do Grupo de Câmaras Reservadas, o qual dispunha que ‘todos os prazos previstos na Lei nº 11.101/2005 e no plano de recuperação judicial devem ser contados em dias corridos, contando-se em dias úteis apenas os previstos no próprio CPC, caso, em particular, dos recursais’. Frisa-se, a propósito, que a reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020 à Lei nº 11.101/2005 não alterou o entendimento consagrado por este E. Tribunal de Justiça; ao contrário, confirmou-o. Tanto é assim que o cancelamento do Enunciado XIV foi justificado exatamente em razão da inclusão de previsão legal expressa sobre a matéria, que tornou dispensável a edição do enunciado. Neste sentido, confira-se abaixo a atual redação do artigo 189, ‘caput’ e § 1º, da Lei nº 11.101/2005, que seguiu na mesma direção do antigo Enunciado XIV: ‘Art. 189. Aplicase, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o disposto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei. § 1º Para os fins do disposto nesta Lei: I todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos; e II as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa’. (...)” (TJSP, 2ª Câmara Reserva de Direito Empresarial, AI 2160948-47.2021.8.26.0000, Rel. Des. MAURÍCIO PESSOA, Julg. 14.12.2021, DJe 14.12.2021)
Ressalte-se, ainda, o estudo realizado no precedente a seguir pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
“(...) Alinhado o objeto do agravo, antes do exame do mérito, deve ser apreciada e refutada a preliminar de não conhecimento formulada pelo agravado, ao argumento de que seria extemporâneo em razão de ter sido interposto após o prazo quinzenal legalmente assegurado para o exercitamento desse direito. Aduzira o agravado que o prazo deve ser contato em dias corridos e não em dias úteis, como fizeram as agravantes. Defendera que, em consonância com a regra albergada no artigo 189, §1º, inciso I, da Lei nº 11.101/2005, todos os prazos previstos nessa norma devem ser contados em dias úteis, ficando patente a intempestividade do presente recurso. Essa arguição não pode ser acolhida, pois formulada à margem da realidade processual. Inicialmente deve ser registrado que, até o advento da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, a Lei de Recuperações Judiciais e Falências não previra a forma de contagem dos prazos nela estipulados. Sobreleva pontuar que, com as alterações empreendidas, fora fixado no artigo 189, §1º, inciso I, que todos os prazos previstos na Lei nº 11.101/2005 serão contados em dias corridos. Ocorre, contudo, que o caput desse mesmo dispositivo fixara a aplicação de forma subsidiária do Código de Processo Civil, como se infere do abaixo reproduzido: (...) Com efeito, a alteração empreendida pela Lei nº 14.122/2020 não ilide a controvérsia estabelecida sobre a forma de contagem dos prazos nas ações de falência e recuperação judicial. É que, conquanto tenha assentado que todos os prazos da Lei nº 11.101/2005 devem ser contados em dias corridos, determinara a aplicação de forma subsidiária do Código de Processo Civil. Nesse contexto, exsurge controvérsia no tocante à forma de contagem dos prazos recursais, pois, segundo a disciplina do CPC, são contados em dias úteis. A controvérsia é otimizada pela ressalva contida em aludido dispositivo, pois, legitimando a aplicação subsidiária do disposto no CPC aos procedimentos contemplados pela lei especial, ressalva que essa aplicação é cabível desde que não seja incompatível com os princípios da lei recuperacional. Assim, a controvérsia sobre a forma de contagem dos prazos dos recursos interpostos em face das decisões proferidas em ações de falência e recuperação judicial após a alteração legal ainda perdura. Contudo, deve ser resolvida mediante análise sistemática do aludido dispositivo. (...) entendo que, na hipótese, diante do confronto entre o disposto no Código de Processo Civil e no artigo 189, §1º, I, da Lei de Falências, sobeja que, mediante interpretação sistemática, em se tratando de prazo recursal, ostentando, pois, natureza processual, aplica-se o estatuto processual de forma subsidiária, conforme a ressalva estabelecida pelo legislador especial. Com efeito, a forma de contagem do prazo reportado pela lei de falências em dias úteis deve ser considerado apenas para os prazos de natureza material, não podendo ser aplicado aos prazos de caráter processual. Essa interpretação, a par de se alinhar com a ressalva contemplada pelo legislador especial, não se revela incompatível com os princípios inerentes aos processos de falência e recuperação e da própria lei especial. Intepretação diversa, inclusive, irradiaria mais controvérsia ao sistema recursal inerente aos procedimentos próprios da falência e da recuperação judicial, pois ensejaria que estariam os recursos interpostos em face das decisões prolatadas no trânsito das ações submetido a procedimento diverso. De outra parte, a demarcação da aplicação da regulação especial aos prazos em geral, excetuados os pertinentes aos prazos recursais, assegura a celeridade almejada com os procedimentos e demandada pela própria natureza das ações especiais. Plausível, pois, a apreensão no sentido de que o artigo 189, §1º, I, da Lei 11.101/2005 fixara a contagem do prazo em dias corridos apenas se o prazo guardar natureza material, interpretação que deve ser prestigiada até que viceje entendimento definitivo sobre a controvérsia. A título ilustrativo deve ser assinalado, ademais, que o novo estatuto processual aplica-se, supletivamente, aos regramentos especiais, de conformidade com o previsto no artigo 1.046, parágrafo 2º, o qual dispõe que “permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este código.” Sobreleva pontuar, ainda, que, conquanto a recuperação judicial se sujeite a procedimento especial, a contagem dos prazos processuais deve se sujeitar à regra geral, estabelecida pelo estatuto processual, como forma de se uniformizar o cômputo de prazos e assegurar segurança jurídica. Seguindo esse raciocínio, fica patente, então, que o prazo de 15 (quinze) para a interposição de agravo de instrumento nas ações de recuperação deve ser contabilizado apenas em dias úteis, por se tratar de prazo de natureza processual, conforme o artigo 219 do estatuto processual, abaixo reproduzido, in verbis: “Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais.” Aferido que, na hipótese, o contagem do prazo recursal é em dias úteis, ressoa impassível a tempestividade deste agravo de instrumento. (...)” (TJDFT, 1ª Turma Cível, AI 0718271-15.2021.8.07.0000, Rel. Des. TEÓFILO CAETANO, Julg. 09.12.2021)
Todavia, observe-se que se, por um lado, há singular clareza (em razão da ressalva do § 2º do art. 189) de que o prazo para interposição de agravo de instrumento seria contado em dias úteis, não me parece, por outro lado, tão segura a disposição sobre os embargos de declaração.
Por isso, por regra de prudência, é sempre melhor – caso seja necessário – “errar” prazos para menos, que para mais (considerando a consequência jurídica de ultrapassar o prazo acarreta). Embora existam sólidas razões para crer que os prazos recursais, em geral, são contados em dias úteis mesmo no microssistema da Lei nº. 11.101/2005, não seria de todo mal contar os cinco dias dos embargos declaratórios de forma contínua.