DOS DIREITOS REAIS DE GARANTIA: UMA ANÁLISE DAS DIFERENÇAS ENTRE HIPOTECA E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA SOBRE BENS IMÓVEIS.
Conforme a teoria personalista, os direitos reais são um conjunto de direitos previstos a partir do art. 1.225 do Código Civil, que disciplinam a relação jurídica entre pessoas em vista de um determinado bem móvel ou imóvel.
No geral, os direitos reais estão ligados ao conceito de propriedade e se subdividem em duas espécies, quais sejam, os direitos reais da propriedade em si mesma e os direitos reais sobre coisa alheia. A primeira espécie diz respeito ao uso, gozo e fruição de determinado bem, tendo como sujeito ativo o titular da propriedade, enquanto a segunda relaciona-se aos direitos de fruição, aquisição e de garantia, em que o titular da propriedade confere a um terceiro direitos sobre o bem de sua titularidade, seja por uma imposição legal, seja por uma convenção entre as partes.
Neste estudo, contudo, busca-se analisar especificamente a aplicabilidade e as diferenças entre os institutos da hipoteca, previsto no art. 1.419, 1.473 e seguintes do Código Civil, e da alienação fiduciária, previsto no Decreto-Lei nº 911/69 e Lei nº 9.514/97, por serem ambas as modalidades as mais conhecidas e utilizadas atualmente.
A hipoteca é um direito real de garantia instituído sobre bens imóveis, e excepcionalmente sobre bens móveis conforme previsão legal, possuindo ampla aplicabilidade prática nos contratos privados para garantia de obrigações pecuniárias.
No caso da hipoteca convencional, em suma, esta decorre da assunção de uma obrigação pelo devedor por meio de um contrato, no qual as partes convencionam uma cláusula de garantia, obrigação acessória que consiste na imposição de um gravame sobre o imóvel oferecido pelo devedor do qual é obrigatoriamente titular, como forma de garantir o cumprimento do objeto principal.
Nesta hipótese não há transferência da propriedade, mas tão somente a garantia de que, caso não quitada integralmente a dívida pelo devedor hipotecante no tempo e modo previsto no contrato, o credor hipotecário poderá exigir execução da garantia pela via judicial ou pela via extrajudicial nas hipóteses previstas no Decreto-Lei n 70/66 e na Lei nº 5.741/71, conforme admitido pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade, conforme tese no julgamento do RE 627.106:
"É constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial, previsto no Decreto-lei nº 70/66"
Destaca-se que para uma garantia efetiva da dívida, a hipoteca deve ser averbada na matrícula do imóvel oferecido pelo devedor conforme determina o art. 1.492 do CC/2002, no Cartório de Registro de Imóveis competente, tornando o gravame de conhecimento público e dando eficácia erga omnes à garantia, ou seja, torna a hipoteca oponível a terceiros. Nesse diapasão, importante mencionar que desde 2016 ao julgar o REsp 1.455.554, o Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento de que a ausência de registro da hipoteca não acarreta a sua invalidade, mas tão somente limita sua eficácia às partes, que nasce desde a sua constituição, seja pelo contrato, pela lei ou pela decisão judicial que a fixou, senão vejamos decisão recente a respeito do tema:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. DECISÃO QUE REJEITOU EXCEÇÃO DE PRÉ- EXECUTIVIDADE. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA 283/STF. HIPOTECA. VALIDADE ENTRE AS PARTES COMO CRÉDITO PESSOAL. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. 1. Execução de título extrajudicial no bojo da qual foi proferida decisão rejeitando exceção de pré-executividade. 2. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o conhecimento do recurso especial. 3. A existência de fundamento do acórdão recorrido não impugnado ? quando suficiente para a manutenção de suas conclusões ? impede a apreciação do recurso especial. 4. A hipoteca se constitui por meio de contrato (convencional), pela lei (legal) ou por sentença (judicial) e desde então vale entre as partes como crédito pessoal. Precedentes.5. Agravo interno no agravo em recurso especial não provido. (AgInt no AREsp 1864370/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/09/2021, DJe 22/09/2021)
Ainda sobre o registro, a hipoteca, por se tratar de uma forma de constituição de um direito real sobre um bem imóvel, submete-se à regra prevista no art. 108 do diploma civilista, que impõe a constituição de uma escritura pública em caso de imóveis cujo valor ultrapasse o montante de 30 (trinta) vezes o maior salário-mínimo vigente no país.
A hipoteca também pode ser instituída por previsão legal, que consiste em um direito atribuído pela legislação a determinadas pessoas independentemente da vontade do devedor ou, ainda, por decisão judicial durante o curso de um processo de execução ou de cumprimento de sentença, submetendo-se às mesmas regras acima destacadas.
Por fim, a extinção da hipoteca se dá naturalmente pelas hipóteses contidas no art. 1.499 do Código Civil, pela extinção da obrigação principal, pelo perecimento da coisa oferecida, pela resolução da propriedade, pela renúncia do credor, pela remição, pela arrematação ou adjudicação e, ainda, pela averbação do cancelamento da hipoteca, à vista da respectiva prova de uma das circunstâncias referidas que ensejam sua extinção.
Por sua vez, a alienação fiduciária pode se dar sobre bens móveis e imóveis. As regras aplicáveis à alienação fiduciária de bens móveis estão previstas no Código Civil, no art. 1.361 e seguintes, enquanto a modalidade destinada aos bens imóveis encontra guarida em legislação especial (Decreto-Lei nº 911/69 e Lei nº 9.514/97).
Sobre a segunda modalidade, objeto do presente estudo, pode-se compreender a alienação fiduciária como “(...) o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel” (art. 22, Lei nº 9.514/97). Isso significa que, objetivando garantir o cumprimento de uma obrigação, o devedor fiduciante oferece ao seu credor fiduciário o imóvel de sua titularidade para garantir o cumprimento da obrigação principal.
O que difere a hipoteca da alienação fiduciária é que esta trata da constituição de um direito real de garantia sobre coisa própria em favor de terceiro, tendo como objeto a efetiva transferência da titularidade para o credor até que a dívida seja integralmente quitada. Ocorre, portanto, o desdobramento da posse, e, desse modo, o devedor continua na posse do imóvel (posse direta) e o credor se torna titular da propriedade. Para que ocorra a efetiva transferência de titularidade e se constitua a alienação fiduciária, necessário o registro no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título. Com o cumprimento da obrigação, a propriedade é devolvida ao devedor.
l vigente, a legitimidade para receber a propriedade fiduciária estava restrita às instituições financeiras e outras pessoas jurídicas a que a lei viesse a reconhecer a legitimidade. Porém, com o advento do Código Civil de 2002, entretanto, ao tratar da propriedade fiduciária de bens móveis, retirou essa restrição, possibilitando a contratação da alienação fiduciária para garantia de quaisquer obrigações.
No que tange a alienação fiduciária de bens imóveis regido pela legislação própria, ainda que tenha sido instituída no bojo da lei que também instituiu o Sistema de Financiamento Imobiliário/Habitacional (SFI/SFH), segundo a jurisprudência do STJ, a lei não exige que o contrato de alienação fiduciária de imóvel se vincule ao financiamento do próprio bem, de modo que é legítima a sua formalização como garantia de toda e qualquer obrigação pecuniária. Da mesma forma, esta modalidade de garantia não é privativa do SFI e do SFH, podendo, ainda, ser formalizada por instrumento público ou particular com efeitos de escritura pública, nos termos do artigo 38 da referida lei.
Em caso de inadimplemento, a propriedade resolúvel dada em garantia consolida-se em nome do credor fiduciário, após execução do seu crédito por meio da execução extrajudicial no Cartório de Registro de Imóveis, realizada a intimação do devedor para a constituição em mora, averbação do leilão e demais atos necessários à execução, conforme garantido pelo art. 26 e seguintes da Lei nº 9.514/1997, e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, bem como pela via judicial.
Com o pagamento da dívida e seus encargos, resta resolvida a propriedade resolúvel, e no prazo de trinta dias, a contar da data de liquidação da dívida, o fiduciário fornecerá o respectivo termo de quitação ao fiduciante, sob pena de multa em favor deste, equivalente a meio por cento ao mês, ou fração, sobre o valor do contrato e, à vista do termo de quitação, o oficial do competente Registro de Imóveis efetuará o cancelamento do registro da propriedade fiduciária, nos termos do art. 25 da respectiva lei.
Diante do explorado, nota- se, em que pese ambos os institutos analisados tenham como objetivo garantir o cumprimento de uma obrigação principal, seja qual for a natureza desta, cada uma possui seu cenário de aplicabilidade específico, bem como lei e procedimento próprio para a sua constituição e execução da garantia.
Nesse sentido, tem-se, em primeiro lugar, que na hipoteca não compreende a transferência da titularidade do imóvel oferecido em garantia, enquanto a alienação fiduciária essencialmente exige a transferência da propriedade para o credor no ato da contratação entre as partes.
Com o inadimplemento do devedor, na alienação fiduciária faculta-se a execução pela via judicial ou extrajudicial, este previsto na legislação própria, enquanto para execução do crédito hipotecário, em que pese também seja possível executar a garantia por ambas as vias, o procedimento extrajudicial encontra-se restrito às hipóteses previstas no Decreto-Lei n 70/66 e na Lei nº 5.741/71.
Em vista das diferenças aqui destacadas, especialmente no que diz respeito à transferência ou não da titularidade, resta clara a necessidade de uma avaliação do caso concreto para cada contrato que se pretenda realizar de modo a escolher a melhor forma de garantir a satisfação da obrigação assumida. Essa necessidade surge do fato de que cada uma das modalidades de garantia estudadas possui seu âmbito de aplicabilidade específico em razão das partes envolvidas, bem como ambas possuem vantagens e desvantagens, que serão mais ou menos evidentes a partir da natureza e valor da obrigação principal.