ESTUDOS SOBRE A PAZ E AS FORMAS DE VIOLÊNCIAS SOCIAIS: UMA NARRATIVA SOBRE A IMPORTÂNCIA DA TRANSDISCIPLINARIDADE EM TAIS ANÁLISES
Os Estudos sobre a Paz (EP) objetivam propor formas de redução de violências que vão além das estatais, como também as socioculturais e econômicas, sendo estas, formas de violências que se perpetuam em determinados países. Como Ferreira (2017) sinalizou, os países latino-americanos estão repletos de exemplos de Estados que são classificados enquanto pacíficos e, porém, seus níveis de homicídios são tão elevados que eles fazem parte das estatísticas internacionais de violência armada. Sendo assim, o debate acerca dos Estudos sobre a Paz parte da premissa de que as análises sobre violência precisam ultrapassar as barreiras estatais, posto que existem diversas formas de conflitos que se estendem através de problemas de cunho social.
Ao destacar que os seres humanos são facilmente ofuscados pela estrutura, cultura e instituições, Galtung (2010) evidencia a importância de se incorporar as problemáticas socioculturais nos estudos sobre violência, principalmente em países que possuem aspectos culturais expressivos, que auxiliam na manutenção de diferentes formas de conflitos. A partir do entendimento de que as violências socioculturais são utilizadas por muitos como uma forma de dominação, sobretudo simbólica, elas não podem continuar sendo deixadas a parte dos Estudos sobre a Paz, dado que os conflitos gerados por tais violências compõem o cerne dos problemas vivenciados em determinados países.
Utilizando o Brasil como exemplo, é possível salientar tais aspectos. Visto que este é considerado um Estado pacífico, no sentido de não possuir grupos armados que disputem pelo domínio político, se faz urgente o questionamento do porquê um país pacífico ter taxas de homicídio e violência tão impactantes.
Só no ano de 2016, um jovem negro/preto foi morto a cada 23 minutos (SENADO, 2016). Nos primeiros 8 meses de 2020, o percentual de ocorrências de assassinatos de pessoas Trans aumentou 70% em comparação a 2019 (O GLOBO, 2020), sendo que o Brasil está há anos em primeiro lugar no ranking de países com as maiores taxas de homicídios de pessoas LGBTQIA+ do mundo (CORREIO BRASILIENSE, 2016). Ele é o quinto colocado no ranking mundial de feminicídios (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015), e em 2019 os dados apontavam um caso de violência doméstica a cada 2 minutos (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).
Isto posto, o Brasil (e a maior parte dos países latino-americanos) é um exemplo nítido de um Estado classificado na qualidade de “pacífico”, mas que se encontra com problemas sérios de violências estruturais. Isso ocorre pelo destaque dado à paz negativa nos Estudos sobre a Paz e resolução de violências, tendo em visto que tais estudos focaram mais nas questões estatais, ignorando os impactos causados pelas violências socioculturais. Uma vez que a concepção de paz negativa parte da ideia de que a paz é um conceito negativo, apreendido como a ausência da violência direta, ela acaba desconsiderando as demais formas de violência (POLITIZE, 2018).
Em vista disso, Galtung sinaliza a necessidade de se refletir sobre as diferentes formas de violências sob a ótica da paz positiva, tendo em vista que ela é concebida como algo que ultrapassa a violência direta e foca também em uma busca pela paz estrutural. Deste modo, o autor identifica a urgência em se analisar os Estudos sobre a Paz sob esta outra perspectiva, entendendo que para alcançá-la será preciso uma análise científica que perpasse diferentes disciplinas.
Galtung (2010) salienta que os variados estudos em Ciências Humanas auxiliam no entendimento sobre a paz. Em seu texto, “Peace Studies and Conflict Resolution: The Need for Transdisciplinarity”, ele aborda sobre algumas dessas disciplinas, reforçando sua importância para as análises sobre a paz. O estudo da Sociologia contribuiria para o entendimento de que os processos ou relações interacionais podem ser benéficos ou não, equitativos ou não, além deles poderem se combinar em estruturas de diferentes modos, sendo muitas vezes estruturas hierárquicas ou cíclicas. Já o estudo da Antropologia evidenciaria a diversidade cultural existente na humanidade, alertando para as diferenças entre as culturas como parte da fundação e da estrutura do processo social. As Ciências Políticas, por outro lado, sinalizariam as variações entre formas duras e suaves de poder. Logo, o autor percorre todas as disciplinas desde a Psicologia, História e Economia, passando pelas demais, para evidenciar a importância que cada uma delas trará para os EP.
Assim, a proposta de seu trabalho é ressaltar a urgência de uma transdisciplinaridade nos estudos sobre a paz, para que deste modo as resoluções sobre os conflitos dos países visem a busca por uma paz positiva, e não mais pela paz negativa. Para mais, como Galtung (2010) destaca, o Estado não possui o monopólio sobre a guerra, a violência, conflitos e nem sobre a paz, e é por isso que tais estudos estão (ou deveriam estar) também extremamente preocupados com as questões estruturais, tal como gênero, questões raciais e outros conflitos socioeconômicos e culturais.
Visto que “Os Estudos sobre a Paz falam sobre a condição humana em geral” (GALTUNG, 2010, tradução da autora), é de exacerbada importância o entendimento de que tais estudos devem possuir uma transdisciplinaridade em todos os seus aspectos, englobando o que cada uma dessas Ciências Humanas tem a oferecer. Por fim, apesar de muitos estudiosos ainda insistirem em seguir pelo viés da paz negativa, é nítido o impacto que essa nova forma de análise trará para a resolução dos conflitos e violências nos países, dado que ela permitirá uma análise mais precisa sobre as diferentes facetas das violências presentes em cada região.
Referência Bibliográfica
- CUNHA, Thaís. Brasil lidera ranking mundial de assassinatos de transsexuais. Correio Brasiliense, 2016. Disponível em: http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasillideraranking-mundial-deassassinatos-de-transexuais. Acesso em: 03 de dez. de 2020.
- FERREIRA, MARCOS ALAN S. V. “Estudos Críticos da Paz e Crime Organizado Transnacional”. Revista Crítica de Ciências Sociais: revista quadrimestral do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Coimbra, n. 113, p. 29-50, set., 2017. Em: https://journals.openedition.org/rccs/6643
- FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública, Ano 14, São Paulo, 2020, 332 p.
- GALTUNG, JOHAN. “Peace Studies and Conflict Resolution: The Need for Transdisciplinarity”. Transcultural Psychiatry: n. 1, v. 47 p. 20-32, fev. 2010. Em: https://doi.org/10.1177/1363461510362041
- MAPA DA VIOLÊNCIA. Homicídio de mulheres no Brasil. Brasília, 2015, 83p
- RIZZO, Erica. Tipos de violência: quais operações de paz podem combatê-los?. 2 de mar. 2018. Disponível em: https://www.politize.com.br/tipos-de-violencia-eoperacoesde-paz/. Acesso em: 23 de set. 2021.