MONARK E O CASO ELLWANGER
Em 08.02.2022, no programa “Flow Podcast”, da empresa Estúdios Flow, disponibilizado para amplo acesso gratuitamente no Youtube, o apresentador e podcaster Bruno Aiub (também conhecido como “Monark”) enveredou em uma discussão sobre liberdade de expressão, conjuntamente com o co-apresentador e igualmente podcaster Igor Coelho (também conhecido como “Igor 3k”), e com os deputados Kim Kataguiri e Tabata Amaral.
Nesta ocasião, a temática foi parar no tema da liberdade de expressão de grupos políticos extremistas, quando o sr. Aiub opinou:
“A esquerda radical tem muito mais espaço que a direita radical, na minha opinião. As duas tinham que ter espaço, na minha opinião. Eu sou mais louco que todos vocês. Eu acho que o nazista, tinha que ter o partido nazista reconhecido pela lei. (...) As pessoas não têm o direito de ser idiotas? (...) Eu acho que dentro da expressão, eu acho que a gente tem que liberar tudo (...) A questão é se o cara quiser ser um anti-judeu, eu acho que ele tinha direito de ser” (sic) [1]
Houve forte reação nas redes sociais, com muitas entidades judaicas se insurgindo contra o comentário[2], bem assim políticos e partidos[3], ocasionando profunda pressão sobre empresas patrocinadoras para cortar os patrocínios do Flow.[4]
Como resultado, Aiub deixou de ser apresentador do programa e encerrou sua participação na sociedade empresária.[5] O Deputado Kataguiri, que naquela ocasião defendeu a tese de que a liberdade de expressão abrangia até mesmo pessoas como os nazistas, foi alvo de processos na comissão de ética da Câmara dos Deputados.[6] A própria Procuradoria Geral da República abriu inquérito contra os dois para apurar os discursos perpetrados.[7]
Na mesma semana, logo após o episódio acima narrado, o jornalista Adrilles Jorge, em programa da Jovem Pan News, ao se despedir do público (após acalorado debate em que se comentava a controvérsia envolvendo o “Monark”) fez um gesto que, alegadamente, mimetizava a tradicional saudação nazista “Heil Hitler!” ou “Sieg Heil!”, pelo que acabou também demitido do programa[8], e virando outro alvo de investigação pelo Ministério Público.[9]
E mais recentemente, começou a circular um vídeo nas redes sociais de um cidadão trajando camiseta branca, com um escudo negro largo no centro e, dentro dela, a Totenkopf, a caveira de ossos cruzados, símbolo da infame organização Waffen-SS. No vídeo, o cidadão faz ainda a tradicional saudação fascista, mimetizada dos romanos, com o braço direito estirado entre 30 e 45 graus acima da cabeça.[10]
Decerto, nazismo no Brasil é crime, e não o é por ser meramente “extremo” ou “politicamente incorreto”, mas porque a doutrina nacional-socialista é intrinsecamente antagônica aos valores preconizados na Constituição Federal de 1988.
A proibição do nazismo, com clareza, neste país, decorre de pressuposições de ordem histórica e sociológica, mas também de uma interpretação sistemática do bloco de constitucionalidade brasileiro, da legislação infraconstitucional, e dos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário (por exemplo, a “Convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial”, de 1965 – Decreto nº. 65.810/69), tendo por fundamento mais explícito o famoso e festejado caso Ellwanger.
No começo dos anos 1990, Sigfried Ellwanger, notório neonazista brasileiro, fez publicar obras de escritores antissemitas e pró-nazistas, inclusive de própria autoria (em nome próprio e por pseudônimo).
Condenado alguns anos depois pelo crime de racismo, argumentou que a condenação foi incorreta, não porque não teria escrito material antissemita (isto admitiu com orgulho), mas porque o judaísmo não seria, propriamente uma raça (consequentemente, sua conduta não poderia ser definida como “racista”, não atraindo a imprescritibilidade prevista no texto constitucional)[11].
O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, na forma do Habeas Corpus nº. 82.424, originalmente da relatoria do Ministro Moreira Alves, que inicialmente concedeu a ordem acolhendo a excêntrica tese da defesa. O voto, entretanto, não criou raízes, e logo atraiu a dissidência aberta pelo Ministro Maurício Correia, acompanhada por todos os demais membros da Corte, exceto, evidentemente, o citado Relator, bem como Ministros Marco Aurélio e Carlos Ayres Britto.
Em interpretação sistemática, o Pretório Excelso considerou que o nazismo é simplesmente inconciliável “com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático”. Condutas apologistas do nazismo são “aéticas e imorais” e “implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País”.
Aliás, a liberdade de expressão, que de forma alguma pode ser vista como absoluta (não existem direitos fundamentais absolutos), “não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra”.
Por conseguinte, quando a Lei nº. 7.716/89, com redação dada pela Lei nº. 8.081/90, torna crime “Praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional”[12], abrange evidentemente a discriminação contra judeus, não por serem raça, escreveu o Ministro Maurício Correa, já que raça apenas a humana é, mas porque assim foram considerados pelos racistas e como tal desprezados.
“Com efeito, a divisão dos seres humanos em raças decorre de um processo político-social originado da intolerância dos homens. Disso resultou o preconceito racial. Não existindo base científica para a divisão do homem em raças, torna-se ainda mais odiosa qualquer ação discriminatória da espécie (...) O que vale não é o que pensamos (...) mas efetivamente se quem promove o preconceito tem o discriminado como uma raça e, exatamente com base nessa concepção, promove e incite a sua segregação (...) Embora hoje não se reconheça mais, sob o prisma científico, qualquer subdivisão da raça humana, o racismo persiste enquanto fenômeno social, o que quer dizer que a existência das diversas raças decorre de mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na aplicação do direito” (Voto Min. Maurício Correia, pág. 6-14).
Não se pode olvidar que a Constituição Federal de 1988 tem uma preocupação sobrelevada com a noção de igualdade, conforme se vê em seus arts. 3º, incisos I, III e IV, 5º, caput e incisos I e XLI[13], erigindo ainda a dignidade da pessoa humana e a cidadania como princípios fundamentais da República (art. 1º, caput e incisos II e III), pelo que o discurso que negue essa mesma dignidade a qualquer grupo, independentemente do motivo, não merece proteção constitucional.
Importante, oportunamente, destacar que também a Lei nº. 7.716/89, em seu art. 20, § 1º, torna crime especificamente a fabricação, comercialização, distribuição ou veiculação de “símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”.
Em nosso entender, pelas mesmas razões acima indicadas, embora a norma fale especificamente na “cruz suástica ou gamada”, evidentemente estão abrangidos quaisquer símbolos do regime nacional-socialista, como representações de notórios nazistas (Adolf Hitler, Herman Goring, Joseph Goebels, Heinrich Himmler, etc.), e emblemas da SA ou da infame SS e variantes.
Em um momento em que o Brasil assiste a uma preocupante escalada de movimentos neonazistas e fascistas, pelo menos desde 2015[14], discursos lenientes ou deferentes aos movimentos extremistas de Direita não podem ser tolerados. Como consta da ementa do HC 82.424, jamais “podem se apagar da memória dos povos que se pretendem justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável”.
[1] O programa original, em razão da polêmica que se seguiu, foi tirado do ar. No entanto, consegui encontrar o trecho em que isto é dito no seguinte endereço online: https://www.youtube.com/watch?v=HqGA1qVdRXs. Acesso em: 12 fev. 2022.
[2] Entidades israelitas condenam fala de Monark sobre partido nazista. In: UOL, São Paulo, 08.02.2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/02/08/confederacao-israelitacondena-fala-de-monark-sobre-partido-nazista.htm. Acesso em: 13.02.2022.
[3] COSTA, Ana Gabriela. Políticos, partidos e entidades se manifestam sobre caso Monark. In: CNN, São Paulo, 08.02.2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/politicos-partidos-e-entidadesse-manifestam-sobre-caso-monark/. Acesso em: 13.02.2022.
[4] GHIROTTO, Eduardo. Patrocinadores foram perfis mais citados após fala de Monark no Flow. In: Coluna Guilherme Amado, Metrópoles, 10.02.2022. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/patrocinadores-foram-perfis-mais-citados-aposfala-de-monark-no-flow. Acesso em: 13.02.2022.
[5] FRANZÃO, Luana. Estúdios Flow confirmam que Monark não é mais sócio da empresa. In: CNN, São Paulo, 09.02.2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/estudios-flow-confirmam-quemonark-nao-e-mais-socio-da-empresa/. Acesso em: 13.02.2022.
[6] MENDES, Sandy; LAGO, Rudolfo. PT pede cassação de Kim Kataguiri após declaração sobre nazismo. In: Congresso em Foco, 09.02.2022. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/congressonacional/pt-pede-cassacao-de-kim-kataguiri-apos-declaracao-sobre-nazismo/. Acesso em: 13 fev. 2022.
[7] ESTADÃO CONTEÚDO. PGR abre investigação contra Monark e Kim Kataguiri por fala sobre nazismo. In: Exame, 09.02.2022. Disponível em: https://exame.com/brasil/pgr-abre-investigacao-contramonark-e-kim-kataguiri-por-fala-sobre-nazismo/. Acesso em: 13 fev. 2022.
[8] MP-SP toma atitude contra Adrilles Jorge por suposta saudação nazista. In: RD1, 10.02.2022. Disponível em: https://rd1.com.br/mp-sp-toma-atitude-contra-adrilles-jorge-por-suposta-saudacaonazista/. Acesso em: 13 fev. 2022.
[9] TOMAZ, Kleber. Adrilles e Jovem Pan são investigados pelo MP-SP e podem pagar indenização por suposto gesto nazista. In: G1, SãoPaulo, 12.02.2022. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/saopaulo/noticia/2022/02/12/adrilles-e-jovem-pan-sao-investigados-pelo-mp-sp-e-podem-pagar-indenizacaopor-suposto-gesto-nazista.ghtml. Acesso em: 13 fev. 2022.
[10] MARREIROS, Lucas. Vídeo de jovem vestindo camisa com símbolo nazista e fazendo saudação a Hitler viraliza em Teresina; ato é crime. In: G1, Teresina, 11.02.2022. Disponível em: https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2022/02/11/video-de-jovem-vestindo-camisa-com-simbolo-nazistae-fazendo-saudacao-a-hitler-viraliza-em-teresina-ato-e-crime.ghtml. Acesso em: 13 fev. 2022.
[11] CF/88, art. 5º (...) XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
[12] A Lei foi ligeiramente modificada posteriormente pela Lei nº. 9.459/97, mas como a conduta de Ellwanger implicava publicação de material antissemita, não houve alteração na sua situação, já que a pena não foi alterada pelo novo texto. Em todo caso, atualmente o art. 20, caput, prevê especificamente o crime de “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, que é qualificado se “cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza” (art. 20, § 2º).
[13] Já no preâmbulo, os constituintes inscreveram que uma das finalidades do Estado Democrático brasileiro seria “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
[14] MENA, Fernanda. Brasil vive escalada de grupos neonazistas e aumento de inquéritos de apologia do nazismo na PF. In: Folha de São Paulo, 14.08.2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/08/brasil-vive-escalada-de-grupos-neonazistas-e-aumento-deinqueritos-de-apologia-do-nazismo-na-pf.shtml. Acesso em: 13 fev. 2022.