O CRIME DE ABORTO
Em linhas gerais, o aborto, no direito brasileiro, constitui crime, ou seja, uma conduta típica, ilícita e culpável. Por ser um crime doloso contra a vida, o aborto atrai competência do tribunal do júri, e é um crime, naturalmente, de ação penal pública incondicionada.
Para a maioria da doutrina e jurisprudência, o crime de aborto implica em qualquer forma de interrupção dolosa antrópica da gravidez, desde a concepção até o nascimento, isto é, o parto da criança. Interessante anotar, nesta toada, o precedente a seguir do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO SECURITÁRIO. SEGURO DPVAT. ATROPELAMENTO DE MULHER GRÁVIDA. MORTE DO FETO. DIREITO À INDENIZAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DA LEI Nº 6194/74. 1 - Atropelamento de mulher grávida, quando trafegava de bicicleta por via pública, acarretando a morte do feto quatro dias depois com trinta e cinco semanas de gestação. 2 - Reconhecimento do direito dos pais de receberem a indenização por danos pessoais, prevista na legislação regulamentadora do seguro DPVAT, em face da morte do feto. 3 - Proteção conferida pelo sistema jurídico à vida intra-uterina, desde a concepção, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. 4 - Interpretação sistemáticoteleológica do conceito de danos pessoais previsto na Lei nº 6.194/74 (arts. 3º e 4º). 5 - Recurso especial provido, vencido o relator, julgando-se procedente o pedido. (STJ, 3ª Turma, REsp 1120676, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Julg. 07.12.2010, DJe 04.02.2011) (grifo nosso)
E para uma aplicação mais propriamente penal, o acórdão a seguir é suficientemente eloquente:
MANDADO DE SEGURANÇA - CRIME DE ABORTO - EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA - COMPETÊNCIA TERRITORIAL - ART. 70 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - CONSUMAÇÃO DO CRIME DE ABORTO - MORTE EFETIVA DO FETO - COMPETÊNCIA DO JUÍZO DE ARAGUARI - PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO - AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO - SEGURANÇA DENEGADA. 01. Para a concessão da Segurança, hão de se encontrar presentes os pressupostos que a autorizam, sendo mister a presença de violação de direito líquido e certo. 02. A competência será determinada pelo lugar em que se consumar a infração, conforme disposto no art. 70 do CPP. 03. O delito de aborto se consuma com a efetiva morte do produto da concepção. (TJMG, MS 10000150541340000 MG, Rel. Des. FORTUNA GRION, Julg. 06.10.2015, DJe 16.10.2015) (grifo nosso)
Essa distinção, por mais comezinha que seja, é bem importante. O bem jurídico tutelado pelos crimes previstos nos arts. 121 a 128 do Código Penal é essencialmente a vida, assim, o atentado contra a vida do nascituro constitui o aborto, mas o atentado contra a vida do recém-nascido, se presente o estado puerperal da mãe, constituirá infanticídio. Claro que se ausente prova inequívoca desse estado, por consequência, a conduta deverá ser tipificada como homicídio, veja-se:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - HOMICÍDIO QUALIFICADO E OCULTAÇÃO DE CADÁVER - IMPRONÚNCIA - IMPOSSIBILIDADE - MATERIALIDADE DELITIVA E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - INTELIGÊNCIA DO ART. 413 DO CPP - DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA PARA O DELITO DE INFANTICÍDIO - AUSÊNCIA DE PROVAS CAPAZES DE DEMONSTRAR O ESTADO PUERPERAL - ALEGAÇÃO QUE DEVE SER DIRECIONADA AO CONSELHO DE SENTENÇA. RECURSO NÃO PROVIDO. (...) 3. Não há como prosperar o pedido de desclassificação do delito de homicídio para o crime de infanticídio quando o conjunto probatório inserto aos autos não atesta, de maneira induvidosa, que a agente agiu sob a influência do estado puerperal. (TJMG, 6ª Câmara Criminal, RESE 10427180014024001, Rel. Des. RUBENS GABRIEL SOARES, Julg. 25.05.2021, DJe 28.05.2021) (grifo nosso)
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DESCLASSIFICAÇÃO. PRONÚNCIA. INFANTICÍDIO. ESTADO PUERPERAL. COMPROVAÇÃO PERICIAL. PROVA INEQUÍVOCA. RECURSO DESPROVIDO. 1. O estado puerperal caracteriza-se pela alteração psíquica da mulher em decorrência do parto, diminuindo-lhe a capacidade de completo entendimento ou de determinação perante a realidade. 2. O Laudo Pericial, elaborado por psiquiatra forense do Instituto Médico Legal, afirma que as informações constantes nos autos são suficientes para se diagnosticar a presença do estado puerperal na hipótese, sobretudo em razão do contexto da ação, da dinâmica dos fatos e do quadro de estresse reativo, com sintomas depressivos graves, apresentado pela ré após o delito. (...) 5. Recurso desprovido. (TJDF, 2ª Turma Criminal, RESE 20131310028556, Rel. Des. SILVÂNIO BARBOSA DOS SANTOS, Julg. 01.10.2015, DJe 06.10.2015) (grifo nosso)
Nos termos do Código Penal, existem três formas típicas de aborto, nem todas implicando na responsabilização penal da outrora gestante. Em comum, são todas espécies dolosas, ou seja, dependentes de um ato comissivo (ação positiva no plano fático, capaz de ser ligada causalmente a um resultado lesivo a bem jurídico) ou omissivo (deixar de agir na forma esperada, com o objetivo de gerar o resultado lesivo), não se admitindo a punição ao “aborto culposo”, isto é, o que decorreria de imprudência, negligência ou imperícia.
Por conseguinte, se provocado em si mesma, temos o auto aborto:
Art. 124 -Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Pode ser causado por terceiros, mas com consentimento, nesse caso temos uma dupla responsabilização, ou seja, tanto do parteiro, quanto da parturiente, destaque-se:
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos.
E pode ainda ser causado por terceiros, mas sem consentimento, constituindo essa, evidentemente, a forma mais grave (e, nesse caso, obviamente será responsabilizado apenas o agente que praticar o aborto):
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos.
Evidentemente, que se a gestante não tiver condições de dar seu consentimento, porque é menor de quatorze anos, ou caso seja induzida a erro, o aborto assumirá sua forma penal mais grave (CP, art. 126, parágrafo único). Observe-se que nesse caso, pessoas absolutamente incapazes (maiores de ou com quatorze anos e menores de dezesseis anos) são consideradas, para fins penais, como capazes de dar consentimento.
Caso a gestante sofra lesões ou morra, quem induziu o aborto responderá na forma qualificada, com ampliação da pena em um terço ou até em dobro, a depender do caso (CP, art. 127).
O aborto, por outro lado, é legal em três hipóteses, duas previstas no próprio Código Penal, e uma fruto de construção jurisprudencial. Assim, o Código exclui a punibilidade “se não há outro meio de salvar a vida da gestante” (art. 128, I) ou “se a gravidez resulta do estupro” (inciso II), sendo este último caso condicionado, evidentemente, ao consentimento da mulher ou, caso incapaz, de seu representante legal.
A terceira hipótese é o aborto do feto anencéfalo, incorporado ao direito brasileiro, a partir do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal:
ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. (STF, Plenário, ADPF 54, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Julg. 12.04.2012, DJe 30.04.2013) (grifo nosso)
A anencefalia é um caso de malformação fetal, um defeito na formação do tubo neural do nascituro em desenvolvimento. Nesses casos, o nascituro não possui cérebro, calota craniana, cerebelo e/ou meninges, não subsistindo em vida não mais que alguns poucos meses após o nascimento, em casos raros, sendo a regra o óbito logo após o parto.1
Portanto, aborto no Brasil é crime, e só é autorizado em específicas exceções. É um tema polêmico, que levanta debates apaixonados, em que as partes (seja pró ou contra) nem sempre estão dispostas ao convívio amistoso. Seja como for, o aborto, neste país, ainda é um caso de polícia.
1 SEDICIAS, Sheila. Entenda o que é Anencefalia e suas principais causas. In: Tua Saúde. Disponível em: https://www.tuasaude.com/anencefalia/#:~:text=Anencefalia%20%C3%A9%20uma%20malforma%C3% A7%C3%A3o%20fetal,horas%20ou%20meses%20de%20vida.. Acesso em: 13 ago. 2021.