O QUE É UM ESTADO LAICO?
Por mais essencial e central que seja o conceito de laicidade (seja do ponto de vista da operacionalidade técnica do jurista; seja do ponto de vista político da operacionalidade prática, pública e discursiva do conceito), verifica-se que é de difícil (e extremamente controvertida) delimitação.
Como salientam Robert J. Barro e Rachel M. McCleary (2005), as vezes é bastante claro se um país é “laico” ou se não o é, e as vezes é simplesmente difícil saber em qual categoria deve-se reputar uma determinada organização social. Mesmo porque alguns países podem de maneira menos ostensiva privilegiar uma religião específica (por exemplo, a católica apostólica romana), um conjunto de credos específicos (por exemplo, o cristianismo, em lato senso) ou mesmo o simples fato de ter uma religião (o que coloca a descrença em desvantagem social relativa), desafiando a precisa classificação.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o Estado é laico quando independe da religião como forma de integração social, e quando a origem da soberania passa a repousar no povo e não no divino. Por esta linha, mesmo países que possuam “Igrejas de Estado”, como a República Argentina, podem ser considerados laicos, vez que o que importa é o “respeito à liberdade de consciência, autonomia do político frente ao religioso e igualdade dos indivíduos e de suas associações perante a lei, bem como não discriminação” (BLANCARTE apud ORO, 2011).
Portanto, podemos à primeira vista indicar que a laicidade tem elementos gerais que clarificam a operacionalidade do conceito, mas também depende do contexto social específico em que se desenvolve o Estado laico moderno.
A precisão dessas afirmações merece elaboração, mas antes se faz necessário uma distinção para com outras expressões muito comumente utilizadas como sinônimos, mas que, como na Torre de Babel, mais confundem que auxiliam, são elas “secularização”, “secular”, “secularismo”, “laicização” e “laicidade”.
“Secular” denota, em suma, aquilo que não é “santo”; sua proximidade para com “secularização” e “secularismo”, porém, tornam inapta a utilização da expressão “estado secular” como sinônimo de “estado laico”. Na verdade, a secularização não implica necessariamente o declínio global da religião, mas sim sua inscrição no esquema mais amplo de diferenciação social da modernidade (a religião é realocada como um subsistema cultural, perdendo a centralidade que outrora possuía). De outro lado, “laicização” é usado para descrever relações institucionais, isto é, “secularização” define um processo abrangente de diferenciação social, enquanto que “laicização” traduz um processo de modificações institucionais.
Ou seja, a secularização é um processo social e a laicização é um processo institucional com consequentes bastante diversos: a secularização não necessariamente produz um Estado laico; enquanto a laicização (que também não necessariamente pressupõe a secularização) produz um Estado laico que pode ou não ser secular. Em verdade, “laicização” e “secularização” tratam de processos históricos diacrônicos, isto é, só podem ser compreendidos a partir de sua evolução temporal; já laicidade é um termo essencialmente sincrônico, ou seja, é como podemos nomear um estado de coisas específico e, se bem compreendido, uma relação essencialmente institucional entre religião e Estado.
Segundo Paula Montero (2006), a religião enquanto esfera diferenciada da vida social é fruto da modernidade e da racionalização do mundo, inaugurada, ironicamente, pelo ascetismo protestante. Porém, esse processo de diferenciação não gerou um simples movimento de retração do religioso, de forma que “secularismo” seria um termo designativo de apenas um aspecto de um fenômeno maior.
Habermas demonstra que “é possível prescindir do paradigma da secularização para pensar o processo de diferenciação das esferas”, isto é, a diferenciação entre a esfera pública (Estado) e a esfera privada (sociedade), e a diferenciação entre a esfera privada burguesa (sociedade civil) e a “interiorização da família no espaço privado” (MONTERO, 2006). Nesse sentido, o processo de diferenciação não necessariamente empurra mecanicamente a religião para a esfera doméstica. Cada sociedade, assim, permite “configurações específicas” às formas religiosas. “No Brasil (...) o processo que levou à separação entre Estado e Igreja alocou a religião na sociedade civil” (MONTERO, 2006). Assim, podemos categorizar como “secular” um estado de coisas tal em que a religião é relegada a um papel não necessariamente individual, mas sim público na interação dos sujeitos sociais em dada sociedade; e “laico” um estado de coisas tal em que a religião deixa de ser uma preocupação do Estado, institucionalmente considerado.
Uma sociedade pode, assim, ser bastante secular, sem possuir um Estado laico (talvez o caso do Reino Unido); bem como pode um Estado ser laico, sem estar circunscrito a uma sociedade muito secular (malgrado haja uma correlação histórica – mas não necessariamente de prevalência - entre ambos os conceitos), como parece ser o caso do Brasil e dos Estados Unidos da América.
Como dito, a laicidade tem elementos gerais que clarificam a operacionalidade do conceito, mas também depende do contexto social específico em que se desenvolve o Estado laico moderno.
A Declaração universal sobre laicidade no séc. XXI (Déclaration universelle sur la laïcité au xiie siècle, 2005), ratificada por mais de duzentos acadêmicos de trinta países, indica que “laicidade” (laïcité) implica três características: respeito à liberdade de consciência e aos seus desdobramentos práticos individuais e coletivos; autonomia da política e da sociedade civil em relação a normas religiosas e filosóficas particulares; ausência de discriminação direta ou indireta (igualdade de tratamento). A essas três, Baubérot inclui uma quarta: a neutralidade de julgamento do Estado. Todas essas características estão interligadas, e um Estado será laico mesmo que possua uma igreja oficial, desde que a autonomia política, a liberdade de consciência, a neutralidade e a igualdade de tratamento sejam resguardadas. Não é, portanto, qualquer aproximação entre o Estado e a variedade de organizações religiosas que poderia configurar alguma espécie de violação à laicidade do Estado. Inclusive, a neutralidade denominacional (ou mais propriamente a imparcialidade no tocante às diferentes confissões religiosas) do Estado não pode ser confundida com um simples relativismo ético-político. Na verdade, a recepção ou reconhecimento do pluralismo, em suas múltiplas dimensões, mas sobretudo, no domínio da Ética e da Religião, não implica totalmente na abdicação de valores presumidamente universais.
Não há de se confundir “laicidade” com “laicismo” (para alguns, “laicidade de combate”), entendido este como a oposição ativa do Estado ao discurso religioso. O laicismo desconfia e repudia o fenômeno religioso; a laicidade adota uma postura imparcial, sem descurar do reconhecimento do papel dos diversos cultos (MIRANDA, 2016). O laicismo procura trancar a vida religiosa na esfera estritamente privada das relações do indivíduo, isto é, o laicismo pugna por extirpar qualquer sinal de manifestação religiosa da vida pública (BLANCO, 2009). O laicismo é um juízo negativo do Estado quanto à fé religiosa; pode ser descrito também como anticlericalismo (CANOTILHO, 2003).
O reconhecimento oficial de certas crenças religiosas envolve um processo de dupla exclusão, isto é, o Estado acaba por excluir tanto religiões “não reconhecidas”, quanto figuras que são reconhecidamente “espirituais”, ou pelo menos são assim percebidas ou assim se apercebem, mas que não se filiam propriamente a alguma religião em particular. E nesse caso não faz diferença alguma se o Estado reconhece “oficialmente” dez, vinte ou cinquenta credos religiosos, em verdade, “a alienação do campo público das convicções religiosas é patentemente óbvia” (PEÑA-RUIZ, 2014) e não pode ser considerada, de forma alguma laica.