SÃO "JURIDICAMENTE" TERRORISTAS OS INVASORES DA PRAÇA DOS TRÊS PODERES?
Como é de conhecimento geral, no dia 08 de janeiro de 2023, a população brasileira foi tomada por assombrosa surpresa diante das horripilantes cenas de depredação da Capital Federal. Na versão brasileira do ataque ao Capitólio norte-americano (por acaso os eventos se desdobraram pouco após o bianiversário do levante trumpista), não foram poupados os prédios do Palácio do Planalto (sede da chefia do executivo federal), do Congresso Nacional (órgão de cúpula do legislativo federal), e do Supremo Tribunal Federal (órgão de cúpula do judiciário federal).
O Presidente da República, acertadamente, decretou a intervenção federal sobre a segurança pública do Distrito Federal e, com isso, conseguiu restabelecer a ordem na Capital Federal, sem embargo do desastre até então gerado: milhões de reais em patrimônio público destroçado (incluindo obras de arte e relíquias históricas), fora o simbolismo da destruição dos prédios-sede dos três poderes pátrios (um ataque direto ao coração do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição Federal de 1988).
Quase imediatamente ao ataque, os agentes do caos receberam muitos nomes, como golpistas e “terroristas”. No entanto, vale chama-los assim?
A lei brasileira de antiterrorismo (Lei nº. 13.260/2016) classifica o terrorismo como um conjunto de atos, praticados por um ou mais indivíduos, “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública” (art. 2º, caput).
A lei destaca os seguintes atos que, se presentes os elementos subjetivos do tipo, poderiam caracterizar “terrorismo”: (art. 2º, § 1º, inciso I) “usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa”; (inciso IV) “sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento” (destaque nosso); e (inciso V) “atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa”.
Ao que tudo indica, malgrado nítido caráter golpista nos agitadores de 08 de janeiro, os atos não foram cometidos “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião” (ao menos não ostensivamente), o que descartaria a incursão dos agentes da depredação como “terroristas” no sentido da legislação interna.
Inobstante, como salientou em suas redes sociais o prof. Valerio Mazzuoli – eminente internacionalista brasileiro -, para a Organização das Nações Unidas, terrorismo também incluiria “atos criminosos destinados ou calculados a provocar um estado de terror no público em geral, um grupo de pessoas ou pessoas em particular para fins políticos” (A/Res/49/60).
Deste modo, conquanto não sejam “criminalmente terroristas” – no sentido de que não podem ser enquadrados na legislação penal brasileira específica -, podem perfeitamente ser considerados “terroristas” em um sentido mais amplo, com base inclusive no ordenamento jurídico internacional que, como é sabido, é recepcionado pela Constituição Federal, mesmo porque é um princípio dirigente das relações internacionais brasileiras o “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (CF/88, art. 4º, inciso VIII).
Vale ressaltar que o fato dos agitadores de 08 de janeiro não poderem ser considerados “penalmente terroristas”, não significa que não tenham incorrido em outros crimes, mesmo porque a própria lei antiterrorista contém semelhante ressalva (Lei nº. 13.260/2016, art. 2º, § 2º). Nesta linha, o Código Penal foi modificado, em 2021 (fina ironia, dado que durante a vigência do governo anterior), pela Lei nº. 14.197/2021, que acresceu ao diploma penalista um novo título, denominado “TÍTULO XII – DOS CRIMES CONTRA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO”, e que, em seu capítulo II (“DOS CRIMES CONTRA AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS”), passou a prever dois novos crimes, o de “Golpe de Estado” e o de “Abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, veja-se:
Abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
Golpe de Estado
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.
Analisando os pavorosos eventos de 08 de janeiro de 2023, parece que os agentes da depredação em larga medida se enquadram nessas disposições, além de outros aplicáveis a cada caso (a depender do que fizeram no processo de destruição dos prédios públicos da Capital Federal, ou de como tomaram parte na agressão a jornalistas e a outros agentes públicos).
É claro que os golpistas ainda serão submetidos a larga investigação criminal e, posteriormente, ao processo penal, garantida a ampla defesa e o contraditório. Ainda que tenham tentado abolir o Estado de Direito, este ainda vive, e vem a socorro de seus próprios detratores, sem discriminação de qualquer espécie.
Nesta toada, é imperativo que a sociedade civil se mantenha atenta as investigações, não apenas para que ninguém fique de fora – sem anistia -, tampouco para que não haja excessos por parte do Poder Público, isto é, para que tudo corra dentro das apregoadas “quatro linhas da Constituição”.