SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOTRANSFOBIA
Celebrando o mês da diversidade sexual, que culmina no dia 28 de junho, dia internacional do orgulho LGBTQIA+, parece apropriado elaborar um retrospecto da ação direta de inconstitucionalidade por omissão nº. 26 que tipificou a conduta penalmente reprovável da homotransfobia.
Em primeiro lugar, vale uma breve digressão sobre as ações de controle concentrado. No direito brasileiro, o controle de constitucionalidade, na via judicial, pode ser exercido de duas maneiras: difusamente, alegando-se a questão constitucional como causa de pedir; ou concentradamente, por meio das chamadas ações diretas. Em nosso ordenamento jurídico são cinco ações desse tipo: a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), a ação direta de inconstitucionalidade interventiva (ADI Interventiva) e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão versa resolver alguma “omissão inconstitucional”. Trocando em miúdos, a omissão é dita inconstitucional, porque a Constituição Federal exige a prática de algum ato normativo específico para concretizar ou integrar um determinado direito, de modo que o titular desse direito fica impossibilitado de exercê-lo enquanto não houver norma infraconstitucional que o regulamente ou autorize, razão pela qual a morosidade ou inércia dos poderes responsáveis pela prática desse ato acaba sendo intolerável.
Nas palavras do próprio Supremo Tribunal Federal:
A omissão do Estado (...) qualifica-se como comportamento revestido de intensa gravidade político-jurídica, eis que , mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados da Lei Fundamental.
(...) Nada mais nocivo , perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente ou, então, do que a promulgar com o intuito de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes ou de grupos majoritários, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos ou, muitas vezes, em frontal desrespeito aos direitos das minorias, notadamente daquelas expostas a situações de vulnerabilidade A ação direta de inconstitucionalidade por omissão, nesse contexto , tem por objetivo provocar legítima reação jurisdicional que, expressamente autorizada e atribuída ao Supremo Tribunal Federal pela própria Carta Política, destina- se a impedir o desprestígio da Lei Fundamental, a neutralizar gestos de desprezo pela Constituição, a outorgar proteção a princípios, direitos e garantias nela proclamados e a obstar, por extremamente grave, a erosão da consciência constitucional.
É neste contexto que foi manejada a ADO nº. 26, que promoveu a criminalização da homotransfobia ou, mais exatamente, a equiparação de práticas transfóbicas e homofóbicas – caracterizadas, nos termos da decisão, como “aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém” – ao crime de racismo, regulado pela Lei nº. 7.716/89.
A omissão foi identificada a partir do disposto no art. 5º, inciso XLI, da Constituição Federal, que determina que a “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Decerto, a violência homofóbica e transfóbica é uma triste realidade no contexto brasileiro, país que, em matéria de diversidade sexual, sempre conviveu com um infame paradoxo: ao mesmo tempo que possui a maior parada do orgulho LGBTQIA+ do mundo, também é o país que mais mata esse grupo de pessoas.
Se a dignidade da pessoa humana é um fundamento constitucional (CF/88, art. 1º, inciso III), e se são objetivos da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inciso I), reduzir desigualdades sociais (art. 3º, inciso III), e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, inciso IV), a lgbtqfobia se afigura absolutamente intolerável.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os
(...) integrantes do grupo LGBTI+, como qualquer outra pessoa, nascem iguais em dignidade e direitos e possuem igual capacidade de autodeterminação quanto às suas escolhas pessoais em matéria afetiva e amorosa, especialmente no que concerne à sua vivência homoerótica. Ninguém, sob a égide de uma ordem democrática justa, pode ser privado de seus direitos (entre os quais o direito à busca da felicidade e o direito à igualdade de tratamento que a Constituição e as leis da República dispensam às pessoas em geral) ou sofrer qualquer restrição em sua esfera jurídica em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero! Garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ a posse da cidadania plena e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais pode significar, nestes tempos em que as liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial entre civilização e barbárie.
À primeira vista pareceria estranha a equiparação da “homotransfobia” ao crime de racismo, sobretudo se tomarmos esse último termo em seu sentido usual, isto é, de “preconceito ligado a cor”. Na realidade, o racismo deve ser compreendido em sua dimensão social, ou seja, ele não se liga estritamente a questões biológicas ou fenotípicas, na verdade trata-se de uma manifestação de poder ou, como bem anotou o Pretório Excelso, “de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade” de um determinado grupo mais vulnerável.
Neste particular, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a relação de opressão histórica por que passa a comunidade LGBTQIA+ no Brasil, acaba por um implicar um tratamento diferenciado desse grupo, visto que
(...) por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.
De outro lado, a Suprema Corte, resguardando o direito fundamental à liberdade religiosa (e prestigiando a laicidade do Estado) fez questão de anotar que a “repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada”, todavia fez constar uma importante condição: “desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.
A criminalização da homotransfobia, a despeito das severas críticas que sofreu (algumas justas, outras destemperadas), constituiu, portanto, um importante passo na direção de uma maior igualdade substancial entre a população LGBTQIA+ e os demais membros da coletividade.
Ainda que a criminalização de condutas não vá necessariamente resolver o problema a que se propõe (isto é, o crime é um componente normal da sociedade), a positivação de existências no direito serve como ferramenta de legitimação. Ao reconhecer que a discriminação em razão da orientação sexual ou identidade de gênero é crime, o Estado assume um ônus de promover a inclusão desses grupos e de reprimir a exclusão. Realmente, criminalizar não é uma solução para a lgbtqfobia, mas é ao menos um começo. Mais um dos vários pequenos passos que a comunidade LGBTQIA+ teve e tem que dar para poder educar à sociedade de que, contra o ódio e o preconceito, o amor sempre vence! #LoveWins #BePride